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Foto do escritorElio Flores

BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA (1822-2022)

Atualizado: 18 de ago. de 2022

Por que a historiografia deve se preocupar com a história da pátria bolsonarista?

O Bicentenário da Independência na agenda do governo federal.

Elio Flores



No momento em que escrevo, circula um suposto ditado turco nas redes sociais: “quando um boi chega ao palácio ele não vira rei, o palácio é que se torna um curral”. Não se está fazendo analogia com D. Pedro I (1798-1834) que se tornou imperador do Brasil em 1822. O objetivo é pensar no Brasil do Bicentenário e um governo que se vangloria em ser conservador na política e ultraliberal na economia. Os especialistas dizem que se trata de um governo negacionista, isto é, quando a expressão da verdade é substituída pela mentira e pela manipulação.


A lógica dos negacionistas da ciência e revisionistas da própria historiografia impõe aos demais sujeitos da história do tempo presente uma efeméride fundamentalista, a partir do lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.


O que isso significa? Que as religiosidades de matrizes africanas e ameríndias estão sendo convidadas a sair da história. Que seus terreiros e espaços sagrados são vistos como contrários à ideia bolsonarista de pátria. Vejamos o que se narra e o que se defende nas fontes governistas.


A plataforma oficial do governo tem por título “Bicentenário da independência do Brasil – 1822-2022”. O primeiro dado é a contagem dos dias, horas, minutos e segundos para a efeméride. Depois, mais abaixo, o usuário se depara com quatro links para navegar.


No primeiro, com o mesmo título da barra inicial, pode-se ler o discurso governista sobre a independência e a apresentação dos símbolos do Bicentenário. Coisas assim foram escritas: “A Independência do Brasil foi conquistada com um brado. Nossa liberdade, anunciada com uma exclamação”. Donde se segue que: “Um jovem príncipe, do alto de seu cavalo, ergueu sua espada”. Esse método, primeiro as armas, depois as pessoas, é traduzido como a garantia da liberdade. A repetição é a alma do negócio, chamado história bolsonarista da pátria.


Na apresentação dos símbolos, a lógica do mito busca o ídolo das origens (o nascimento do Brasil), como se a linha de tempo fosse uma flecha de Pedro a Jair: “Utilizamos como símbolo oficial do Bicentenário o punho de Dom Pedro I erguendo sua espada durante o Grito da Independência”. A história é gesto? Nada mais?


A apresentação do segundo símbolo atesta o racismo religioso, tão impregnado nos apoiadores do governo: “Nas artes das campanhas do Bicentenário, usamos uma versão estilizada da Cruz da Ordem de Cristo, por ser um símbolo presente de forma constante na identidade brasileira, desde o início de sua história até hoje, e por representar os valores religiosos em que os brasileiros se fundamentam”. A bandeira imperial que destaca a mesma cruz no centro e no topo da coroa também é evocada. Os símbolos das religiosidades indígenas e negras simplesmente desaparecem do Bicentenário. É como disse a pensadora negra Lélia Gonzalez (1935-1994), quando criticava o centenário da abolição, em 1988: “Evidentemente que a gente está vendo que não estamos presentes”.


No segundo link, definido como “Memorial da soberania”, foi estabelecida a linha de tempo da Independência. São fixadas onze datas na temporalidade 1500-1822, entre a chegada dos portugueses e a Independência. Seis no século XVI, duas no século XVIII, três no século XIX. As datas escolhidas são todas do heroísmo colonizador. A população negra, escravizada ou livre, está ausente (invisibilizada) e os povos indígenas aparecem como “bons selvagens”.


O negacionismo étnico foi escrito na lógica da história pacífica, quem chegou era bonzinho, quem estava aqui aceitou tudo: “O encontro entre índios e portugueses foi marcado pelo tom pacífico, amigável e de mútuo interesse por parte dos dois povos”. Sabe-se que a pauta governista nesse ano do bicentenário é legitimar a grilagem das terras indígenas e acabar com qualquer política pública em relação aos povos originários. Os direitos humanos pedem socorro, o Cerrado arde em chamas, a Amazônia morre todo o dia, mas um “historiador” ultraconservador, cuja fonte é a bíblia, escreveu que o Brasil “nasce com o encontro de portugueses e índios aos pés da Cruz”.


Outro aspecto que chama a atenção na linha de tempo, estruturalmente racista, é a ausência do século XVII na história bolsonarista da pátria. Na história do Brasil é o século do Quilombo dos Palmares. A primeira expedição punitiva sobre Palmares data de 1602. Numa linha de tempo de outra brasilidade, que contemple os negro-africanos nessa história, teríamos várias datas e eventos para o século XVII palmarino (1602-1695). Os africanos começam a chegar, escravizados, na primeira metade do século XVI. Assim, a América Portuguesa – título do livro do historiador Rocha Pita, publicado em 1730 − não era exatamente portuguesa, mas indígena e negro-africana.


Olhemos agora para o ano de 1822. O dia do Fico. Afirma-se que deputados portugueses obrigaram o retorno de Dom João VI a Portugal, mas não se menciona a Revolução Liberal do Porto (1820). Exige-se também o retorno de Pedro, o príncipe-regente. Brasileiros suplicam a sua permanência. Assim, diz o texto, “orientado pelo pai, Dom Pedro I decide ficar contrariando a classe política portuguesa”. Ora, Pedro ainda não era I nem imperador. Mas esse anacronismo não é tudo.


Para o Sete de Setembro a ideia presentista (a história agora) chega a ser vibrante. Depois de citar o discurso de Pedro, pela fonte do padre Belchior, a data é assim encerrada: “Com essas firmes palavras cheias de amor à Pátria, o Brasil bravamente conquistou as suas SOBERANIA, LIBERDADE e INDEPENDÊNCIA”. Na verdade, essas três palavras gritadas resumem a ideologia do bolsonarismo (e dos bolsonaristas) e são quase todo dia repetidas nos discursos e postadas nas redes sociais.


A historiografia do tempo presente assiste perplexa a efeméride oficial do Bicentenário terrivelmente negacionista.


Independência e Morte?!


Elio Flores é professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autor da tese República às Avessas: narradores do cômico, cultura política e coisa pública no Brasil contemporâneo (UFF, 2002). E-mail: eliochavesflores@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8732-1557.


SAIBA MAIS!

BRASIL. Bicentenário da independência do Brasil – 1822-2022. Gov.br, 18 fev. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3NNA1IM. Acesso em: 13 fev. 2022.


FRANCHINI NETO, Hélio. Independência e Morte: política e guerra na emancipação do Brasil (1821-1823). Rio de Janeiro: Topbooks, 2019.


GOMES, Flávio. Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto, 2005.


MANSO, Bruno Paes. A República das Milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Editora Todavia, 2020.


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