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  • Foto do escritorIara Lis Schiavinatto

AQUI, IMAGENS PALPITAM NAS INDEPENDÊNCIAS

Riscadas, impressas, escarificadas, desenhadas, costuradas, pintadas, gravadas, feitas por artistas e tantas gentes de ofícios, as imagens atravessaram as culturas políticas das independências.

Iara Lis Schiavinatto


No processo de digitalização da cultura associado ao colapso ambiental, as imagens e as mídias atravessam mais e mais o real - inclusive as relações sociopolíticas. Elas estão presentes na celebração do bicentenário da independênccia do Brasil em 2022, cuja agenda não se esgotou. Em 2023, o 2 de Julho – data que pauta a independência baiana - celebra seu bicentenário e tem suas imagens mobilizadas no samba-enredo O Grito dos Excluídos No Bicentenário da Independência da Beija-Flor. Enquanto isso, uma qualificada produção historiográfica atenta criticamente às memórias emaranhadas dos centenários das independências. Mas podemos indagar: as imagens atravessaram as culturas políticas na fundação do Brasil?

Jean-Baptiste Debret. Pano de Boca executado para a representação extraordinária dada no Teatro da Corte por ocasião da Coroação do Imperado D. Pedro I. O Pano de Boca foi mostrado no teatro na noite da coroação de D. Pedro I e em apresentações nos dias seguintes. Foi publicado em Paris por Debret em seu livro Voyage pittoresque et historique au Brésil, pela casa editorial Firmin Didot Frères, entre 1834-1839.


No projeto monárquico centrado no Rio de Janeiro, o Pano de Boca do Teatro executado para apresentação na corte na coroação do Imperador do Brasil d. Pedro I, feito por encomenda ao pintor de história francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), e supervisionado pelo santista José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), indica a notoriedade da imagem na criação de um quadro de história nacional e uma reviravolta nas convenções visuais e políticas.


Exibido nos festejos dessa inédita cerimônia real em 1822, o Pano carregava uma série de referências visuais da França revolucionária, sem fazer referência à figura de Napoleão. Exposto, ele era um instrumento de pedagogia, das paixões e da persuasão políticas, quando o espaço social do teatro capitaneava a sociabilidade da corte.


Na imagem do Pano acima, publicada anos por Debret em sua Viagem Histórica e Pitoresca ao Brasil, ao centro, vemos o trono do governo imperial com a Constituição nas mãos. Nele, uma figura feminina escultórica com vestimentas clássicas e pés plantados no chão corporifica a nação, a liberdade e a igualdade. Essa figura entronada opunha-se à tirania e ao despotismo. Em cima dela, as figuras aladas são os gênios que alardeiam a todos os continentes sobre a independência do Brasil - a nação tropical destinada à produção de commodities.


Esta figura feminina é ladeada por figuras de sujeitos populares junto às tropas com gestos de saudação, braços ao alto, instrumentos de trabalho e armas empunhados, falas em curso. Os gestos dessas figuras, ensina a pesquisadora Marcela Camargo, aludem às representações de homens negros na defesa da cidadania dos libertos e dos homens livres de cor das colônias caribenhas na assembleia constitucional francesa.


Segundo Debret, os sentimentos políticos são galvanizados na fidelidade de uma família negra em que o negrinho armado de um instrumento agrícola acompanha sua mãe. Na mão direita, diz o autor, a figura materna segura o machado usado para derrubar as árvores das florestas virgens e as defende contra a usurpação. Com a mão esquerda, segura ao ombro o fuzil do marido arregimentado e pronto para partir. Ele entrega à proteção do governo seu filho recém-nascido. Também uma indígena branca, ainda nas palavras do autor, entrega os filhos à proteção do governo.


No Pano de Boca, encena-se a celebração de um contrato político e cívico entre o governo imperial e os sujeitos de cor. Eles se encontram em situação de igualdade ao pegar em armas e trabalhar. A nação não pode prescindir deles. Se o Pano de Boca inaugura uma representação da monarquia brasileira e da sua fundação, ela é agenciada por esses sujeitos sociais.


D. Pedro I (1798-1834) viu o Pano de Boca ao ser exibido no teatro na noite de sua coroação em 2 de dezembro de 1822. Ao leitor não escapa, porém, a ausência da figura de d. Pedro I no Pano de Boca, exibido no teatro e estampado por Debret em seu livro. Nele, observem, o imperador não é o artífice da fundação da nação, tampouco seu herói.


A mobilização dos artefatos visuais e das representações políticas não se esgotou, todavia, nesta imagem inaugural – logo depois perdida em um incêndio.


Entre 1822 e 1826, houve um forte investimento no retrato de d. Pedro I e uma notável política por parte das autoridades reais, na corte do Rio de Janeiro, voltada à produção e distribuição do retrato a óleo de d. Pedro I em muitas vilas e cidades do país.


A recepção festiva do retrato do imperador era um modo de celebrar e consolidar o contrato político da fundação da monarquia constitucional nas localidades, muitas vezes debaixo de baionetas e tantos acordos políticos e militares.


Simultaneamente, a partir de 1820 com a instalação das Cortes Constitucionais em Lisboa, houve a produção e a circulação de retratos tirados, gravados e impressos dos deputados constitucionais, considerados homens aptos à política.



Simplício de Sá. Retrato de D.. Pedro I. 1826. Museu Imperial de Petrópolis.













Colecção de retratos dos Heróis de 1820, Francisco António da Silva Oeirense, 1822, gravuras. Acervo e Reprodução: Biblioteca Nacional de Portugal. No sentido horário: Joze Joaquim Ferreira de Moura; João Ferreira Vianna; Francisco de Sousa Cirne de Madureira; Joze Ferreira Borges ; Joze Gonçalves dos Santos Silva; Francisco Joze de Barros Lima ; Jozé Maria Lopes Carneiro; Joze Maria Xavier de Araujo; Joze Manoel de Souza Ferreira e Castro.







Francisco António da Silva Oeirense. Manoel Fernandes Thomas (detalhe). 1822. Gravura. Biblioteca Nacional de Portugal



Tratava-se de uma retratística de homens públicos nos moldes daquela vista nos circuitos artísticos atlânticos. Nela, surgia um novo sujeito social com pose, indumentária e adorno na fundação do mundo liberal constitucional, que rompia visivelmente com o critério do nascimento das sociedades do Antigo Regime. Passava-se a privilegiar a simplicidade e o caráter desses sujeitos, com suas roupas em negro, associados à elegância, à autoridade e à dignidade do retratado.


Esta nova configuração de si remetia ao imaginário político das aptidões liberais e das habilidades letradas. Via de regra, esta retratística liberal constitucional enalteceu a virtude cívica da moderação e a meritocracia como um destino.



Domingos Sequeira. Retrato de Cipriano Barata. Museu Nacional de Arte Antiga





No começo dos anos 1820, o deputado baiano Cipriano Barata (1762-1838) foi assim retratado em vida pelo artista português Domingos António de Sequeira (1768-1837). Ele aparecia como um homem de letras, redator patriótico, com a vivacidade de seu olhar.


O retrato acima contrasta com a reelaboração de sua identidade política a partir de 1831. Cipriano adotou, segundo descrições da época, roupas utópicas e emblemas políticos. Tais como: o casaco de algodão da terra, chapéus de palha, ramo de café nas mãos e longos cabelos brancos. Então, ele alterou substantivamente sua imagem. Algumas interpretações políticas e historiográficas enxergaram nele um político passional, radical, ameaçador e exagerado.




Henrique Passos. Retrato de Cipriano Barata. 2001. Óleo sobre tela. Reprodução: http://geaciprianobarata.blogspot.com/2016/09/barata-e-sociedade-que-o-protagonizou.html.






A liderança de alcance nacional de Cipriano Barata calcava-se no carisma e no convencimento. Sua autoridade não se assentou em poderio militar, na burocracia, na propriedade, no sangue ou no mando. Neste contexto, o próprio retratado percebia a necessidade de expressar sua identidade política, a fim de fortalecer seu carisma e suas posições políticas, a partir também de uma imagética do poder.


Essas pequenas histórias aqui comentadas sobre os sentidos de algumas imagens indicam a variedade delas e como desempenharam mais de uma função política naquela altura. Nos deixam entrever tensões, disputas e fraturas em mais de uma situação. Bem como, acenam com memórias recalcadas no interior do projeto monárquico autoritário centralizado na corte do Rio de Janeiro.


Iara Lis Schiavinatto é docente na UNICAMP. Publicou Pátria Coroada. O Brasil como corpo político autônomo 1780-1831 e Visualidade e Poder: ensaios sobre o mundo lusófono. 1780-1840. iaralis@unicamp.br


Para saber mais:


CAMARGO, Marcela Dantas. Jean-Baptiste Debret e o Pano de Boca de 1822: o Lugar da Pintura de História no Teatro da Corte. 2017. Dissertação (Mestrado em História da Arte) – Universidade Federal de São Paulo, 2017.


DIAS, Elaine. A representação visual de d. Pedro I e da Independência do Brasil: afirmação, legitimação e conflitos de um projeto político. In: SCHIAVINATTO, Iara Lis. Independências, memória e fabricação das imagens. São Paulo: Alameda, 2023.


KNAUSS, Paulo. O retrato do rei D. João VI: 200 anos da aclamação de D. João VI como rei de Portugal, Brasil e Algarves. Rio de janeiro: MHN, 2019.


MOREL, Marco. Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade. Salvador: Academia de Letras da Bahia/Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2001.

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