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  • Foto do escritorAndré Roberto de A. Machado

O PAPEL DAS GUERRAS NA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

Atualizado: 7 de jun. de 2023

Um dos nossos maiores mitos de origem é a ideia de que o Brasil se criou como nação independente sem conflitos, na base de um consenso ou de um acordo entre as elites


André Roberto de A. Machado


É quase um clichê. Uma mesa de bar, muitas horas de conversa e, lá pelas tantas, fala-se sobre as injustiças sociais no Brasil. Invariavelmente, alguém mais exaltado decreta: “essas injustiças sociais só acontecem aqui porque por essas bandas nunca houve uma revolução de verdade! Em Paris não se atreveriam porque ainda se lembram dos tempos em que se caminhava com sangue nas ruas até os tornozelos!”


Com muitas variações, frases como essas, ainda com maiores exageros e fantasias ou mais contidas e realistas, fazem parte do senso comum brasileiro. São expressões que apontam para a ideia de que o povo brasileiro é avesso ao conflito, que prefere sempre uma solução conciliatória. O mais interessante é que essa perspectiva, em alguma medida, é compartilhada por todo o espectro político do Brasil, da esquerda à direita. No caso da direita, para rechaçar propostas de avanços sociais, por mínimos que sejam, sob alegação de que os brasileiros não gostam de radicalismos. Já para a esquerda é o lamento de uma revolução popular que não aconteceu, mas que, quando vier, supostamente irá consertar todas as coisas.


Não por acaso, as histórias das independências ou dos momentos de formação dos Estados Nacionais foram e ainda hoje são um tema sensível para todos os países. Afinal, no imaginário popular essas narrativas justificam a existência dessas pátrias em separado das demais e dão contorno a uma espécie de “espírito coletivo nacional”. Assim, a independência norte-americana, justificada nas narrativas consagradas como luta pela liberdade individual, de alguma forma está presente até hoje na lógica das disputas políticas. Em alguma medida, essa narrativa da independência dá aos norte-americanos a ideia de que a sua essência, o que os unifica, é essa busca pela liberdade individual. Obviamente, essa perspectiva acolhe desde propostas progressistas até as mais abjetas, ultradireitistas. Na França, igualmente, a Revolução Francesa diz muito sobre como os franceses se entendem, ciosos dos seus direitos e da República. Já no Brasil, a narrativa consagrada sobre a independência vende a ideia de que ela foi feita sem conflitos, sem guerras, como se houvesse um grande consenso ou como se tivesse bastado um acordo entre as elites da antiga colônia. Não por acaso, sempre que se invoca o suposto caráter avesso ao conflito dos brasileiros, a ideia de uma independência pacífica é invocada.


Mas, afinal, existiram guerras e elas foram importantes no processo de independência e na formação do Brasil? A resposta é sim, sem sombra de dúvida. Aliás, é possível dizer que a Corte do Rio de Janeiro jamais teve dúvida disso e se preparou para esses combates. Desde junho de 1822, o ministro José Bonifácio já dava ordens para se trazer europeus, de forma disfarçada, para reforçar as forças brasileiras sob o comando do Rio de Janeiro. Entre os mercenários estrangeiros figuraram alguns bem conhecidos, sobretudo o Almirante Cochrane, um comandante inglês já muito famoso por suas façanhas nas guerras napoleônicas e na independência do Chile.


Como explicar, então, o vigor da ideia de que o Brasil se tornou independente de forma pacífica? Há vários aspectos que explicam o sucesso da consolidação dessa memória. Em primeiro lugar, sem dúvida, isso se deve a um projeto historiográfico muito bem construído, no século XIX, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o IHGB, instituição tão ligada ao poder que fez suas reuniões por muitos anos no Paço Imperial, inclusive com a participação constante de D. Pedro II. A partir de algumas permanências, como o fato de o território colonial ter praticamente sido preservado na independência e de haver continuidade da casa reinante, o IHGB construiu uma narrativa na qual o Brasil independente é uma evolução natural da colônia, como uma criança se que se torna adulta.


Outra operação historiográfica muito comum é transformar as mais vultosas guerras de independência – como as ocorridas na Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará etc. – em lutas de libertação contra os portugueses. Ou seja: conflitos complexos, em que se reivindicavam várias coisas, são simplificados em uma narrativa segundo a qual foi necessário enviar reforços do Rio de Janeiro para ajudar lugares que não conseguiam se livrar dos portugueses sozinhos ou que tinham movimentos separatistas, como supostamente em Pernambuco.


Por fim, já no século XX, mesmo uma historiografia bastante crítica minimizou a importância das guerras e dos conflitos na independência. Partindo do resultado desse processo – a manutenção do território colonial no novo país –, para esses historiadores o Brasil se formou a partir de um “acordo entre as elites”, o que explicaria a não fragmentação territorial, ao contrário da América Espanhola. No entanto, o que a historiografia tem cada vez mais demonstrado é que não havia convergências totais entre as classes senhoriais nem mesmo no interior de cada província; que dirá em território tão amplo, com modos produtivos e usos de mão de obra bastante diversos entre as regiões. Mais recentemente, outra explicação bastante difundida tentou eleger o interesse comum que teria viabilizado o “acordo entre elites”: o tráfico negreiro, um problema de âmbito internacional que D. Pedro, membro de uma casa reinante europeia, seria o único na América capaz de negociar com a Inglaterra. Esquece-se, no entanto, que uma das primeiras ações de D. Pedro I foi assinar um tratado com a Inglaterra para o reconhecimento do país, no qual um dos compromissos foi exatamente acabar com o tráfico de escravizados da África.


Não houve consenso nem acordo entre as elites. Houve muitos conflitos, até porque o que estava em disputa não era apenas decidir se manter ligado a Lisboa ou criar um Estado independente. Havia uma crise generalizada, um questionamento sobre os modos de viver daquela sociedade. A Revolução Americana, a Revolução Francesa, a Revolução no Haiti, os movimentos constitucionais na Europa e na América, tudo isso fazia com que os homens desse período vislumbrassem um futuro aberto, novo, não lastreado pelas experiências passadas. Isso permitia sonhar com maiores liberdades e debater vários desenhos para o novo país. Tanto era assim que, em 1824, às vésperas da expulsão dos portugueses da Bahia, o presidente do Conselho Interino de Cachoeira, enclave fiel ao projeto do Rio de Janeiro, dizia que a sua grande preocupação era o dia seguinte à partida dos portugueses. Afinal, como sossegar a expectativa dos povos, inclusive de ex-escravizados, boa parte deles armados por conta da guerra?


Se houve conflitos tão generalizados durante a independência, certamente não foram apenas as operações historiográficas que os fizeram ser menosprezados. É inegável que as dimensões dessas guerras e conflitos foram muito menores que as verificadas na América Inglesa ou Espanhola. Até mesmo a quantidade de mercenários estrangeiros contratados para as guerras foi pequena, não passando de 450 ingleses e ainda menos de outras nacionalidades. No entanto, o erro é avaliar a importância dessas guerras pelas suas dimensões e pela comparação com o ocorrido em outras localidades. Ao invés disso, é necessário perceber que, mesmo não representando forças armadas colossais, as tropas enviadas do Rio de Janeiro tiveram um papel fundamental nessa história. Isso porque desequilibraram a disputa política em províncias extremamente divididas, como a Bahia, Pernambuco, Pará e Maranhão, locais em que nenhum grupo conseguia se tornar hegemônico ou mesmo controlar as tropas provinciais.


Para além de desequilibrar a disputa política em favor do projeto independentista liderado por D. Pedro I, também é um fato que os mercenários sempre se aliaram a projetos políticos mais conservadores. Assim, na Bahia, o mercenário francês Labatut não vai se unir a Sabino ou João Primo, homens negros, independentistas, mas radicais. Da mesma forma, no Pará, Grenfell jamais cogitou unir-se aos indígenas que davam vivas a D. Pedro I, mas também viam a independência como uma revolução que poria fim, entre outras coisas, ao trabalho compulsório a que estavam obrigados.


A independência, tal como se deu, foi a vitória de um projeto conservador que manteve a escravidão e o trabalho compulsório, entre outros elementos do status quo. Mas isso não significa que era a independência imaginada por todos os homens nesse período. Para a vitória do projeto conservador, as guerras foram essenciais. Os radicais, porém, não se deram por vencidos: mesmo depois da subordinação ao Rio de Janeiro, houve conflitos de grande monta em várias partes. O ano de 1824 mostrou isso com uma guerra civil no Pará, a Confederação do Equador em Pernambuco e o levante dos Periquitos – batalhão de homens negros – na Bahia. Em comum, todos esses conflitos demonstraram que havia insatisfeitos com a independência, pela forma como ela se deu e pelo seu pequeno poder de transformação. O seu inconformismo e sua disposição para lutar deixavam claro que não haveria acordo, nem a independência seria pacífica.


André Roberto de A. Machado é professor da Unifesp e coordenador do Blog das Independências. Email: andre.machado@unifesp.br


Para saber mais:


FRANCHINI, Helio. A Guerra de Independência. IN: LEAL, Bruno; CHAVES, José Inaldo. Várias faces da independência do Brasil. São Paulo: Contexto, 2022.


MACHADO, André Roberto de A. Um acordo impossível: o papel das guerras na independência e na definição do Estado no Império do Brasil (1822-1825). Almanack, [S. l.], n. 31, 2022.


PIMENTA, João Paulo G. As guerras de independência do Brasil: notas sobre sua história e historiografia. Almanack, [S. l.], n. 31, 2022.


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