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Foto do escritorAndré Nicacio Lima

A INDEPENDÊNCIA E O ÓDIO AOS PORTUGUESES

A ruptura com a identidade portuguesa na época da Independência abriu caminho para expressões diversas de violência contra portugueses residentes no Brasil


André Nicacio Lima


A Independência do Brasil foi liderada por um príncipe nascido em Portugal, que instituiu uma bandeira com cores e símbolos lusitanos e outorgou uma Constituição que concedia cidadania plena aos portugueses que aqui residiam. Nada disso impediu que os filhos de Portugal fossem violentamente atacados em nome da Independência e da “Nação Brasileira”, ao longo de décadas. Para compreender a distância entre as intenções conciliatórias das elites e os gestos violentos do antilusitanismo popular é preciso observar, antes de mais nada, o papel da identidade portuguesa naquela sociedade.


Durante três séculos de colonização, ser português era ser súdito do rei de Portugal. No Brasil colonial, a identidade portuguesa não significava apenas a partilha de referências culturais como a língua e a noção de ancestralidade comum. Era também uma condição para ter direitos, liberdades e privilégios reconhecidos. Para as elites coloniais, era a condição de sua riqueza, prestígio e poder diante de uma imensa população afroindígena submetida à escravidão e a outras formas de exploração e violência. Por outro lado, para muitos negros e indígenas legalmente livres, afirmar-se português foi uma forma de buscar a garantia de direitos numa sociedade que sistematicamente os inferiorizava.


Ao mesmo tempo em que reiterou o pertencimento a Portugal, a colonização produziu novas identidades. Com o passar de gerações, surgiram “pernambucanos”, “baienses”, “paulistas” etc., sem que essas identidades implicassem a recusa do pertencimento a Portugal. Oposições entre colonos e “reinóis” (nascidos no Reino de Portugal) ocorreram em conflitos como na Guerra dos Emboabas (1708-1709). Porém, nesses casos, tanto colonos quanto reinóis se consideravam portugueses, súditos de um mesmo rei.


Já na conjuntura das revoluções atlânticas do final do século XVIII e início do século XIX, a identidade portuguesa foi confrontada por movimentos que buscavam a separação política. Os rebeldes de Minas Gerais (1789) e da Bahia (1798) não apenas afirmaram a identidade com sua terra como a imaginaram independente de Portugal. Em 1817, rebeldes pernambucanos foram mais longe: quebraram os símbolos de Portugal e proclamaram uma República, negando de maneira radical a identidade com o reino europeu.


Tanto na Revolução Pernambucana quanto na conjuntura aberta pela Revolução Constitucionalista do Porto, o ódio aos portugueses explodiu violentamente. Desde então, o antilusitanismo se incorporou à vida política do Brasil de maneira persistente até meados do século XIX. Saques, depredações, espancamentos, deportações, assassinatos, aos gritos de “mata-marotos”, foram parte da cultura política nacional na mesma época em que o Brasil era inventado como uma nacionalidade. A ruptura com a identidade portuguesa é o principal fator explicativo para essa onda de ódio e violência, já que essa identidade havia estruturado a sociedade colonial desde o princípio. Entretanto, as motivações para a instrumentalização do antilusitanismo foram diferentes em cada caso.


Uma motivação importante foi a oposição interna no meio militar. Naquele contexto, os comandantes eram quase exclusivamente portugueses, enquanto os soldados eram geralmente recrutados no Brasil. Assim, muitos episódios de violência antilusitana foram atribuídos à “soldadesca desenfreada”, que reivindicava pagamentos de soldos, troca de comandantes ou adesão a alguma bandeira política. Por exemplo, em Santos, em 1821, soldados que estavam sem pagamento tentaram destituir comandantes e pilhar as casas de comércio dos portugueses.


Além disso, os nascidos em Portugal detinham privilégios sociais diante dos colonos, o que gerava ressentimentos. Eram eles que acessavam com mais facilidade carreiras na administração, na magistratura e no oficialato das tropas, pois os espaços de formação estavam na Europa. Também havia um marcante predomínio português no comércio varejista. Discursos antilusitanos os acusavam de monopolizar o mercado, gerando carestia. Em 1831, na província de Goiás, assassinatos em série vitimaram homens nascidos em Portugal que ocupavam postos judiciais, enquanto um movimento armado exigia a demissão de todos os portugueses de seus cargos. Já em 1848, os rebeldes da Praieira exigiram em Recife o fim do monopólio português do comércio varejista e sua expulsão da província. Nesses e em outros casos, o ódio antilusitano era instrumentalizado para disputas em âmbito local.


Outro fator importante era a discriminação de cor. Em diversos casos de violência contra nascidos em Portugal, as motivações tinham menos relação com o local de nascimento do que com a cor da pele, demarcadora de desigualdades e de privilégios. É o caso, por exemplo, da tentativa de massacre da população portuguesa de Recife pelo líder negro Emiliano Mundrucu, durante a Confederação do Equador (1824). Nesse evento, os versos que eram entoados pelas tropas rebeldes exaltavam Henri Cristophe, “imortal haitiano” que liderou a reação dos escravizados negros contra os colonos brancos franceses. Em diversas cidades do Brasil, ataques a portugueses foram cometidos por escravizados negros, a exemplo do apedrejamento de uma procissão religiosa em Salvador durante a Guerra de Independência.


Seja qual fosse sua motivação e a extensão dos atos de violência, o ódio aos portugueses foi um elemento central nas disputas políticas que atravessaram o Brasil na época da Independência e nas décadas que se seguiram. Isso ocorreu apesar da vontade dos fundadores do Império do Brasil, a começar por D. Pedro I, que acabou sendo forçado a deixar o país sob alegações diversas, incluindo a de ser português.


Por fim, o antilusitanismo foi instrumento de disputa partidária, usado por exemplo em campanhas eleitorais para acusar o grupo adversário de “antinacional”. Em Mato Grosso, em 1834, um massacre planejado por uma associação política dizimou a população portuguesa residente na província. A “Sociedade dos Zelosos da Independência” tinha por objetivo, declarado nos estatutos, assegurar a Independência do Brasil supostamente ameaçada pelo “partido” do ex-imperador D. Pedro I. As alegações de que os portugueses de Cuiabá conspiravam contra a Independência eram falsas e eivadas de conspiracionismo. Isso não impediu que dezenas de portugueses fossem executados, tendo seus corpos mutilados e suas orelhas expostas triunfalmente em Cuiabá, aos gritos de “Viva a Nação Brasileira”.


Essas cenas de ódio antilusitano são tão parte de nossa formação nacional quanto o grito de um príncipe lusitano, nas margens plácidas do Ipiranga.

André Nicacio Lima é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, autor de trabalhos sobre conflitos políticos no Oeste brasileiro na época da Independência e membro do coletivo História da Disputa: Disputa da História. E-mail: andrenicacio@gmail.com


Para saber mais


HISTÓRIA DA DISPUTA: DISPUTA DA HISTÓRIA (pseud.). Calendário Insurrecional 2021: revoltas anarchicas no Brasil monárquico. São Paulo: HDistro, 2020.


HISTÓRIA DA DISPUTA: DISPUTA DA HISTÓRIA (pseud.). Calendário Insurrecional 2022: as Independências que os senhores tentaram sufocar. São Paulo: HDistro, 2022.


LIMA, André Nicacio. Rusga: participação política, debate público e mobilizações armadas na periferia do Império (Província de Mato Grosso, 1821-1834). 2016. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filofofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-04102016-130459/pt-br.php




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