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IDÉIAS REPUBLICANAS NA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

Heloisa Murgel Starling


No dia 3 de maio de 1817, um domingo, festa de Santa Cruz, a República foi proclamada na cidade do Crato, sul do Ceará. Naquele dia, o vale do Cariri materializou sua adesão ao movimento revolucionário iniciado dois meses antes no Recife. Levou o tempo de encerrar a missa. Em meio aos brados de “Viva à República”, a multidão marchou para ocupar a Câmara Municipal. A República do Crato foi instalada, as autoridades depostas. Novos representantes foram nomeados e começaram a legislar: aboliram impostos, confiscaram armas e propriedade de portugueses. À frente da multidão e entre as lideranças da Revolução de 1817, no Crato, estava uma mulher. Bárbara de Alencar tinha 57 anos. Semeou adesões à revolta, colocou em circulação panfletos inflamados. Fez mais: assumiu protagonismo e decidiu agir politicamente em público – e, é bom lembrar, o público é o espaço por excelência da política. Um espaço rigorosamente proibido para uma mulher.


Em 1817, Pernambuco abriu o ciclo revolucionário da Independência. O historiador Evaldo Cabral de Mello deu um nome definitivo a esse ciclo: “A outra Independência”. Pela primeira vez, parte do território do Brasil materializou uma experiência de autonomia provincial, rompeu com o centralismo da Corte instalada no Rio de Janeiro, propôs um projeto constitucional e vocalizou um programa político de governo na forma de uma República. Ocorreram pelo menos quatro experimentos republicanos no contexto da Independência: no Recife, em março de 1817 e julho de 1824; no Crato, em maio de 1817; e, em janeiro de 1824, na vila de Campo Maior, comarca do Crato – hoje a cidade de Quixeramobim.


Optar pela República, em 1917, exigiu criatividade e engenharia política de seus partidários; afinal, eles precisaram lidar da melhor maneira possível com a circunstância de desenvolver a arquitetura de uma nova forma de governo. Confrontada com a questão da forma – o que é; o que deve ser; e o que é possível fazer, em uma determinada conjuntura, para resolver o problema da composição de uma República –, a linguagem republicana que sustentou o ciclo revolucionário da Independência concebeu uma solução engenhosa: o figurino da República era federativo, e o sistema político confederado; além disso, seu funcionamento dependia de inédito projeto de ordenação constitucional.


Elaborar uma Constituição capaz de resolver o problema da soberania das províncias e, ao mesmo tempo encontrar uma forma estável de governo, era uma novidade e tanto – e entender o processo de criação constitucional como fundamento da prática legislativa definiu o momento em que a Revolução de 1817 se encontrou mais fortemente ligada às idéias próprias a uma linguagem republicana. Entretanto, o trabalho ficou incompleto e o projeto constitucional da República não se institucionalizou. A República caiu em maio de 1817.


Mas, talvez, os revolucionários tenham postergado a Constituinte porque estavam divididos quanto a uma questão ainda mais explosiva: a extensão dos direitos de igualdade. Era de se esperar que a República de 1817 concebesse a reorganização da sociedade em torno da idéia de cidadania e, de alguma maneira, isso aconteceu: a Revolução animou um tipo de sociabilidade pública que se desenvolveu forjada por relações horizontais de reciprocidade e ancorada no patriotismo. Ser patriota era ser cidadão: expressar uma identidade republicana e convidar os demais a aderirem a ela.


Mas havia um problema: aceitar – ou não – estender às camadas mais pobres da população o princípio do patriotismo e confirmar o pressuposto de que homens pobres livres negros e mulatos poderiam interagir com os demais estratos da sociedade pernambucana como iguais. Uma vez feita, a promessa de igualdade pode não ser cumprida, mas não morre mais. A Revolução de 1817 virou Recife de cabeça para baixo, abrindo um tempo novo de participação política. Seus efeitos seriam duradouros sobre a vida e o comportamento político de uma larga população de brancos pobres, indígenas e descendentes de africanos livres e libertos, que vivia em uma sociedade hierárquica, escravista e profundamente desigual.


Mais cedo ou mais tarde, a tensão iria explodir. Em fevereiro de 1823, batalhões de pretos e pardos tomaram Recife e Olinda de surpresa. Por oito dias, escorraçaram a Junta dos Matutos – o governo provincial que fugiu para o interior da província – e aclamaram o governador de armas, antigo capitão do Regimento de Artilharia, Pedro da Silva Pedroso, negro, jacobino, e revolucionário de primeira hora, em 1817. A agitação cresceu depressa demais, escapou do controle das autoridades e assumiu o feitio de insurreição.


Ia piorar. Quem se insurgiu no Recife, em 1823, tinha em mente a Revolução do Haiti. A associação era tão manifesta – declarou um depoente à Devassa aberta logo após a derrota do levante – ao ponto de se ouvir pela cidade e em Olinda “os mais ridículos moleques falar na ilha de São Domingos, e que toda essa terra pertencia mais a eles pretos e pardos do que aos brancos”. A multidão associava Pedroso à figura de Cristovam – um ex-escravizado que comandou tropas revolucionárias, tornou-se general e chegou ao poder, em 1811, num Haiti destroçado pela guerra civil – e tratou de ir para as ruas do Recife rimar Abolição, Revolução e Convulsão Social, anotou o historiador Marcus Carvalho: “Qual eu imito a Cristovam/Esse imortal haitiano/Eia! Imitai a seu povo/Oh meu povo soberano”.


Ao figurar o Haiti como referência política, a “Pedrosada”, nome pelo qual o levante ficou conhecido depois, deu forma a uma nova sensibilidade republicana. Diante de uma linguagem já plenamente republicana, mas onde até então a ninguém ocorria que se acabasse a escravidão, a “Pedrosada” levantou espontaneamente a única matriz do republicanismo que integrou os africanos fora do seu continente à idéia de República, provando para o mundo que o sistema escravista era uma perversa circunstância histórica – e por isso mesmo mutável. Daí por diante, a linguagem do republicanismo no campo dos direitos, da participação pública e da cidadania ingressaria, pouco a pouco, mas de forma sistemática, na formulação de discursos, tomadas de decisão e rumos para encarar o que faltava: o pensamento abolicionista.


Heloisa M. Starling é professora titular-livre de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do Projeto República: núcleo de pesquisa, documentação e memória da UFMG. Publicou, entre outros livros, Brasil, uma biografia (2015), em coautoria com Lilia Schwartz; Ser republicano no Brasil Colônia: a história de uma tradição esquecida (2018). Entre seus trabalhos mais recentes está o livro Linguagem da destruição: a democracia brasileira em crise (2022), em coautoria com Miguel Lago e Newton Bignotto.


Para saber mais


BERBEL, Márcia. “Pátria e patriotas em Pernambuco (1817-1822): nação, identidade e vocabulário político”. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: HUCITEC/Fapesp, 2003.


BERNARDES, Denis Antonio de Mendonça. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo; Recife: HUCITEC/FAFESP: UFPE, 2006.


CANECA, Frei Joaquim. “Dissertação sobre o que deve se entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria”. In: MELLO, Evaldo Cabral de. (org.) Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. São Paulo: Editora 34, 2001.


CARVALHO, Marcus. “Rumores e rebeliões: estratégias de resistência escrava no Recife, 1817-1848”. Tempo. vol. 3, n. 6, dezembro de 1998. p. 7


FRANÇA, Wanderson Édipo. “Gente do povo em Pernambuco: da Revolução de 1817 à confederação de 1844.” CLIO. n. 33, vol.1.


MELLO, Evaldo Cabral de Mello. A outra Independência; o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Todavia, 2022.


MOTINS de fevereiro de 1823 (traslados da Devassa). Projeto Pernambuco. Manuscritos. Biblioteca Nacional. Pasta14, Documento 11, Arquivo 0353. p. 64


PELLEGRINO, Antonia. “Bárbara de Alencar, heroína do Crato”. In: STARLING, Heloisa M; PELLEGRINO, Antonia (org.) Independência do Brasil: as mulheres que estavam lá. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.


SILVA, Luiz Geraldo. “Igualdade, liberdade e modernidade política; escravos, afrodescendentes livres e libertos e a Revolução de 1817”. In: SIQUEIRA, Antônio Jorge et all. 1817 e outros ensaios. Recife: CEPE, 2017.


SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Matriz haitiana”. In: SCHWARCZ, Lilia M; STARLING, Heloisa M.(org.) Dicionário da República; 51 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


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