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  • Foto do escritorAndréa Slemian

HÁ CIDADÃOS E CIDADÃS NA CENA PÚBLICA DA INDEPENDÊNCIA?

Andréa Slemian


Nas Cortes Constituintes da Nação Portuguesa, instaladas em Lisboa em janeiro de 1821, é bem conhecida a proposta do deputado baiano Domingos Borges de Barros de que as mulheres que cumprissem todos os requisitos exigidos aos homens tivessem o direito de votar. As Cortes tinham sido criadas após o movimento revolucionário que ocorreu no Porto no ano anterior, o qual exigiu a volta de D. João VI a Portugal, bem como a formação de um governo constitucional. A proposta de Borges de Barros é feita em abril de 1822, quando se discute exatamente quais os critérios de eleição que deveriam valer aos novos cidadãos. Seu argumento é que “não tem as mulheres defeito algum que as prive daquele direito”, e que o “homem mui cioso de mandar” é que teme a “superioridade” feminina, querendo conservá-las na “ignorância”. Ele acrescenta que não haveria “talentos, ou virtudes em que elas não tenham rivalizado, e muitas vezes excedido” aos próprios homens.


Apesar da eloquência de sua fala, sua proposta não é sequer admitida para votação. Afinal, como se deve imaginar, o ambiente tradicional da política era efetivamente masculino. No entanto, a simples proposição do deputado tocava num ponto sensível se temos em vista as reivindicações que vieram à tona após a eclosão das revoluções desde finais do século XVIII: o dos direitos. Se hoje tem sido comum falar acerca do protagonismo das mulheres na Independência do Brasil, de diversos estratos e grupos sociais e em espaços não apenas políticos, muito menos se tem discutido sobre a enunciação de seus direitos na cena pública nesse momento.


É digno de nota que o próprio deputado Borges de Barros evoque o exemplo da Revolução Francesa. Todos sabemos que a declaração universal de direitos de 1789, a qual foi rapidamente lida, traduzida e difundida por todo o mundo, teve, então, um papel central. Sabemos igualmente hoje que a definição de um sujeito único portador de direitos, evocado como universal por essa linguagem revolucionária, teve (e tem até hoje) um caráter altamente discriminatório. O “universal”, aqui, partia de uma base abstrata que camuflava as diferenças entre os estatutos sociais (homem ou mulher, livre ou escravo etc.), e que sempre tendeu a ser visto como masculino, branco e proprietário, como até pouco tempo atrás. Tanto isso é verdade que em meio ao movimento francês, Marie Gouze, conhecida como Olympe de Gouges, redigiria uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de 1791, que tocava exatamente na afirmação dos direitos femininos frente à conhecida declaração universal de 1789.


O fato é que essas questões aparecem na cena pública da Independência de várias maneiras e tensionam, de alguma maneira, os padrões existentes. É observado como o Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco. Alerta!, periódico do combativo Cipriano Barata, publicava uma carta assinada por quase 100 mulheres, moradoras da Vila Real do Brejo da Areia, na Paraíba, datada de 17 de agosto de 1823. Elas dizem possuir, conjuntamente aos “famigerados Varões”, “os mais ardentes desejos de reassumir os seus direitos” e “quebrar os vergonhosos ferros da vil escravidão em que jazíamos”. Escravidão, aqui, é sinônimo de absolutismo, despotismo e arbitrariedades de um regime político; assim, suas subscritoras se alinhavam à postura crítica de Barata em relação ao novo Imperador. Mas ao evocarem a palavra direitos, afirmam igualmente serem merecedoras como mulheres e, à sua maneira, tocam o dedo na ferida da descomunal desigualdade no tratamento dado ao gênero feminino na sociedade na qual elas estavam inseridas. Como essa manifestação, existiram outras de semelhante teor na imprensa da época, cujo espaço havia sido inundado de jornais após o fim da censura para publicações promovido pela revolução.


Mas não apenas as donas ou senhoras de posses, como se pode imaginar que seriam as do Brejo da Areia, aparecem neste espaço tensionando os limites dos direitos das mulheres. Em 1824, o jornal Grito da Razão, publicado na Bahia, denuncia um caso de espancamento sofrido por uma Ana Maria das Virgens que, pelo que se pode deduzir, era pobre. A acusação é que ela havia sido agredida com chicotadas por um comandante do destacamento do distrito de Pilar após ter ido à casa do senhor de um escravo que supostamente teria agredido seu filho. Ana Maria das Virgens relata que após o episódio é presa, e na cadeia sofre uma série de agressões que a colocam em um “estado miserável”. Assim que o redator do jornal se posiciona em defesa de Ana, pois que, em suas palavras, “jamais Cidadão algum pode dar pancadas e chicotear a outrem” dessa maneira.


Naquele momento, era muito recorrente a crítica às prisões injustiças e sem comprovação de culpa, também das agressões. Nesse contexto de valorização de direitos universais, o ataque à essa prática surgia como uma das maiores garantias de proteção dadas aos cidadãos. Assim, não há dúvida que Ana pode ser entendida como cidadã, no que tocam aos direitos de garantia individual. Nessa linha, o historiador espanhol Carlos Petit faz uma provocação em texto recente. Revisitando a questão das mulheres no constitucionalismo dos anos 1810 a 1812 na Espanha (no contexto da Constituição de Cádis), afirma que o termo “cidadão” pode servir em muitos momentos para se referir igualmente à “cidadã”, como gênero neutro, e assim evocado para se referir às mulheres no primeiro liberalismo. E mesmo usado por elas, politicamente. O tema é polêmico, mas acreditamos que gere importantes questionamentos sobre o passado, e mesmo sobre o presente.


As histórias sobre as mulheres anteriores ao período constitucional já têm mostrado como elas tinham direitos reconhecidos, além da imensa participação social e protagonismo que alcançavam. Ainda mais nessas terras coloniais portuguesas na América em que cada vez se comprova mais a ação de muitas delas. É central pensar que sua subalternidade esteve enquadrada, sobretudo, no reconhecimento de seus direitos a partir do espaço da família, núcleo central da ordem social de caráter patriarcal. Assim que tinham um papel central como mães, esposas e filhas; no entanto, também poderiam ser juridicamente reconhecidas como “chefes de domicílio”, ou mesmo à frente de negócios, quando ocupavam esses espaços.


O problema do constitucionalismo a partir de finais do século XVIII é exatamente a tensão que cria por meio da concepção de indivíduo universal que arrastava consigo uma ideia de igualdade. Ora, se é verdade que muitas mulheres escreveram na impressa, auxiliaram financeiramente o Império, pegaram em armas na Independência – como há muitos casos conhecidos na América espanhola, igualmente – esse movimento circunscreveu mais direitos às mulheres, para além do protagonismo político que sabemos que muitas exerceram?


Essa parece ser a pergunta, mas a resposta está longe de ser simples. Uma coisa temos como certa: que os “novos tempos”, ao colocarem no centro da discussão a universalidade do “homem” e mesmo sua igualdade, enunciavam valores políticos que, no mínimo, tensionavam o mundo então existente. E permitiam a proposição de ideias como a de Borges de Barros, também os exemplos citados nesse breve texto. No Brasil, anos depois, José Bonifácio de Andrada e Silva, quando deputado na Assembleia Legislativa, juntamente com Manuel Alves Branco, elaborou um projeto de lei para reforma do sistema eleitoral em que propunha que as “mães de família viúvas, ou separadas de seus maridos, que reunirem as condições necessárias para o exercício do direito de eleger nas Assembleias primárias” pudessem igualmente votar. O ano era de 1831, e a crise política que se seguiu à Abdicação do imperador fez com que a proposta sequer saísse do papel. Mas ter sido formulada não é um dado irrelevante.


Igualmente é digno de nota que, no ano seguinte de 1832, a escritora potiguar Nísia Floresta publicasse seu “Direitos das mulheres e injustiça dos homes”. Numa defesa feroz das capacidades das mulheres e contra o desprezo com que seriam tratadas, sobretudo, em assuntos que dissessem respeito à ciência e à política, a escritora clamava contra os “tratamentos injustos” que sofriam. É contundente em afirmar que “não há ciência, nem cargo público no Estado, que as mulheres não sejam naturalmente próprias a preenchê-los tanto como os homens”. Da mesma forma como para Bonifácio e Alves Branco, Nísia Floresta é enfática na inexistência de impedimento que impossibilitasse as mulheres de exercerem ambos os direitos de cidadania.


No entanto, havia e esteve ligado à própria força da cultura patriarcal. Mas o fato desses discursos serem enunciados não pode ser ignorado, já que representam a abertura de um espaço de disputa por cidadania que se desdobraria a partir de então, com muitas idas e vindas, vitórias e derrotas, avanços e retrocessos. Foi isso que deu margem a interpretações de que a cidadania poderia ser perfeitamente compatível com as mulheres. Para cujo tema ainda faltam estudos na chave proposta aqui e que permitam responder com mais propriedade à pergunta colocada acima.


Gostaria de sublinhar apenas que, como tema bem atual, a luta pela afirmação dos direitos das mulheres viveria a partir de então um paradoxo: a promessa da revolução de igualdade “universal” e adoção da diferença entre homens e mulheres como um dado “natural” chocava-se com as diferenças entre seus papéis sociais – no caso da mulher, de mãe, esposa, filha etc. Esta diferença seguiria igualmente servindo como base para diferenciação política, social e jurídica. Mais do que um paradoxo, a questão produziu um verdadeiro dilema, conforme já destacou há décadas Joan Scott. A proposta de superação da ideia de diferença de gênero como um dado da natureza, defendida por Scott, e sua reafirmação como uma evidente construção social excludente, segue como fundamental para a história e para os dias de hoje.


Andréa Slemian é graduada em História pela Universidade de São Paulo, possui Mestrado (2000) e Doutorado (2006) na mesma instituição. Desde 2011, é professora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), onde leciona na graduação e na pós-graduação. É especialista em História do Brasil, entre os séculos XVIII e XIX, com ênfase na história da justiça e dos direitos. Atualmente é editora da Revista Brasileira de História (RBH, https://www.scielo.br/j/rbh/ ) e Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq (nível 2).


Saiba mais:

PETIT, Carlos. Españolas gaditanas. En recuerdo de António M. Hespanha. Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, 2020, v. 49, p. 419-454.


SLEMIAN, Andréa; TELES, Danielly de Jesus. « Mulheres em cena no espaço público da Independência”. In: FURTADO, J.; SLEMIAN, A. (org.). Uma cartografia dos Brasis. Poderes, disputas e sociabilidades na Independência. Belo Horizonte: Fino Traço, 2022, p.227-246.

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