29 de setembro de 2022: Paul Veyne, historiador francês de alto quilate, parte para a eternidade aos 92 anos de idade. O respeitado pesquisador da Antiguidade, com um entusiasmo permanentemente juvenil em espírito, já nos avisara que – na eternidade, não se aborreceria. Assim intitulou ele seu livro de memórias de 2014: Et dans l’étérnité je ne m’ennuierai pas (Paris, Albin Michel).
Especialista da Roma Antiga, amigo de Michel Foucaut por toda a vida, tradutor de Virgílio, inquieto perscrutador das inconsistências do discurso historiográfico, alpinista entusiasmado, grande mestre do Collège de France (1976-1999) – Paul Veyne deixou uma obra marcante de vitalidade e criatividade: Comment on écrit l'Histoire (1971), le Pain et le Cirque (1976), l'Inventaire des différences (1976), les Grecs ont-ils cru à leurs mythes? (1983) l'Elégie érotique romaine-l'Amour, la poésie et l'Occident (1983), editor da Histoire de la vie privée : de l'Empire romain à l'an mil (1985), Anatomie d'un nuage (trad. 1985), le Quotidien et l'intéressant (entrevistas, 1995), l'Empire gréco-romain (2005), Quand notre monde est devenu chrétien (312-394) (2007), Foucault, sa pensée, sa personne (2008), Mon musée imaginaire ou les chefs-d'œuvre de la peinture italienne (2010), tradução e apresentação da Eneida de Virgílio (2012), Et dans l'éternité je ne m'ennuierai pas (2014, prêmio Femina de ensaio 2014), Palmyre, l'irremplaçable trésor (2015), La Villa des mystères à Pompéi (2016), Une insolite curiosité (2020) e tantos mais.
Diversas de suas obras foram publicadas em tradução, no Brasil e em Portugal. O texto marcante de 1971, sobre como a história é escrita, já apontava para a dissintonia entre experiência do vivido e a narrativa sobre o experimentado, que se imiscui desde todo o sempre no discurso historiográfico e que pouco atraía a atenção. Os muitos autores que se tornaram conhecidos na década de 1970, como Hayden White, por exemplo, confortaram com suas análises a cuidadosa investigação levada a cabo por Paul Veyne sobre como se vive no mundo sublunar e sobre como se escreve sobre tal vivência, época após época. Sem deixar espaço, contudo, para concessões que debilitem o rigor empírico da pesquisa nas fontes.
Em 1978 pude entreter-me longamente com Paul Veyne, no Collège de France, para acertar com ele a tradução para o português, pela Editora da Universidade da Brasília, do entrementes clássico “Como se escreve a História”. Explicou-me ele nessa ocasião que acabara de reler as provas de um alentado capítulo adicional ao livro, que sairia em breve na edição de bolso pela editora Le Seuil, com o título de “Foucault revoluciona a História”, o que efetivamente ocorreu poucas semanas mais tarde. Presenteou-me então com o manuscrito que preparara, e corrigira em diversas releituras, do dito capítulo, dizendo que já não mais dele precisava. Nem é preciso dizer que conservo essa preciosidade com todo cuidado até os dias de hoje. A exegese das correções sucessivas permite operar uma dissecação reveladora da arqueologia conceitual e estilística revelada pelo manuscrito – um exercício heurístico tão caro a todo historiador.
Com efeito, Veyne realiza um diagnóstico acurado do impacto que Foucault – que não se via como historiador – causou na historiografia ao propulsar os historiadores do século 20 a se debruçar sobre a operação historiográfica e seus condicionantes, como já assinalara magistralmente um outro Michel: de Certeau.
A vibrante, inovadora e inquieta historiografia francesa do século 20 é o resultado de um plantel impressionante de pesquisadores-autores-professores que constelaram o zênite da História com a riqueza dos temas, a ousadia dos métodos, a diversidade das abordagens e a inovação das sínteses.
O leque dos muitos grandes nomes, amplamente conhecidos e reconhecidos, reúne no ateneu da História Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel, Pierre Vilar, Pierre Vidal-Nacquet, Jacques Le Goff, Georges Duby, Philippe Ariès, François Bédarida, Jean Delumeau, Pierre Renouvin, Régine Pernoud, Michel Vovelle, Marc Ferro, e tantos mais, aos quais se juntou Paul Veyne.
Com efeito, Paul Veyne, apaixonado pelos mundos da Antiguidade, sempre deixou entender que todo historiador de certo modo produz uma espécie de “ego-história”, algo como uma “egodisseia”, qual Ulisses de cada novo tempo – na qual contudo o contrato do método impõe o cuidado de sempre explicitar seu ‘lugar de fala’, sem substituir a História por uma história de si. Paul Veyne atravessou e viveu a segunda metade do conturbado século 20 e as duas primeiras décadas do século 21 em todos os seus turbilhões e em suas raras acalmias. Bem sentiu o pulso intelectual do mundo contemporâneo antes e para além do impacto da mídia, onde o ‘anything goes’ parece prevalecer.
Paul Veyne reunia em si a solidez do acadêmico de carreira exemplar, do especialista em epigrafia latina, com um espírito aberto e interessado por uma miríade de assuntos, acolhedor e simpático como o bom provençal francês. Certamente algo desabusado, quem sabe por haver ladeado tantos sábios romanos, Veyne nada tinha de místico: sua história da cristianização do mundo coloca em evidência um fenômeno cultural, social e político sob a ótica fria de um analista equidistante. Sereno, portava sem complexos a deformação da face (leontiasis ossea), que ninguém mais reparava tão logo a conversa engrenava.
‘Romano’ em seu espírito, mantinha-se sempre ereto em seu vasto conhecimento, posto sobre o pedestal de sua estatuária pessoal, esculpida por pensar próprio, sem subserviência a deuses ou a mestres (como demonstram suas trocas aceradas com Raymond Aron, que evoca em suas memórias). Pesquisador e docente transparente e luminoso como um céu azul límpido típico do sul da França, Veyne mantinha distância metódica e exercia com maestria a socrática ironia.
Entre seus escritos e suas vivências, pode-se dizer que Veyne deixou a lição de que, na vida, pouco ou nada vale mais do que a inteligência, o amor e a bondade. Lição que cai muito bem nos tempos atribulados que atravessamos em 2022.
Estevão de Rezende Martins
Universidade de Brasília
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