Na época da Independência, centenas de periódicos e folhetos agitaram as ruas das províncias do Brasil
Marcelo Cheche Galves
Viver sob censura é mais comum do que imaginamos. Em Portugal, a liberdade de imprensa só veio com a Revolução Liberal de 1820, a mesma que obrigou o rei D. João VI (1767-1826) a jurar uma constituição. Pela primeira vez na história de Portugal (que também era a nossa!), experimentavam-se liberdades que hoje reconhecemos como fundamentais. Isso quer dizer que a Independência do Brasil, em 1822, ocorreu em uma época de grandes transformações. Um ano antes, foram eleitos deputados para as cortes portuguesas, responsáveis pela elaboração da primeira Constituição do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves – denominação criada em 1815. Novos tempos aqueles. A constituição asseguraria os direitos políticos anunciados pela Revolução de 1820. Entre eles, a liberdade de imprensa, novidade que causaria grande furor. Era o fim da censura prévia. Agora, os homens livres poderiam debater publicamente sobre os rumos da nação portuguesa, e o fizeram principalmente a partir da impressão e leitura de periódicos e folhetos.
A liberdade de imprensa traria ainda outra novidade para a cena pública. Antes, e sob o controle régio, existiam apenas duas tipografias nas províncias do Brasil: uma no Rio de Janeiro, outra na Bahia. Agora, dezenas de tipografias, públicas ou particulares, se espalhariam também pelas províncias de Pernambuco, Maranhão e Grão Pará.
Nos dois lados do Atlântico foram impressos, entre 1821 e 1823, mais de oitenta periódicos e mais de quinhentos folhetos políticos. O público, acostumado à leitura de jornais oficiais e de outros conteúdos autorizados, agora poderia ler o que quisesse, sem ter que recorrer ao contrabando de papeis proibidos, sempre presente. Mas, o que era debatido?
A elaboração da Constituição do Reino, que ficaria pronta em setembro de 1822, provocou a discussão sobre muitos temas: a manutenção da escravidão; a situação dos libertos; a gradual cessão do tráfico de escravizados; a povoação do território americano com emigrantes europeus; a influência britânica sobre o governo português e, claro, a situação do Brasil perante todas aquelas transformações.
Entre os temas preferidos pela imprensa estava a autonomia que o Brasil deveria ter no Reino Unido português. Com o regresso de D. João VI (1767-1826) a Portugal, em abril de 1821, discutia-se qual deveria ser o papel do Rio de Janeiro na nova ordem política. Com o poder novamente concentrado em Portugal, o regente Pedro (1798-1834), que se tornaria imperador, deveria permanecer no Brasil?
Aos poucos, a divergência de opiniões a esse respeito evidenciou os interesses em jogo nas diferentes províncias do Brasil. Os papeis impressos no Rio de Janeiro, quase sempre, insistiram na permanência do regente, que resistia à decisão das cortes portuguesas, tomada em setembro de 1821, de que deveria regressar a Portugal. Nos meses seguintes, a maioria dos papeis impressos nas províncias do Norte manifestou apoio às cortes. Entre Lisboa e o Rio de Janeiro, preferiam Lisboa.
A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, teve efeitos diferentes no território americano. No Rio de Janeiro houve a concentração de poder político, de recursos públicos – aumentados pela maior cobrança de tributos – e de possibilidades de ascensão social: a corte era uma grande e promissora novidade! Nas distantes províncias do Norte, a situação era outra. Os benefícios trazidos pelo comércio direto com a Inglaterra, aliada de Portugal, não compensavam os custos para a manutenção da corte no Rio de Janeiro.
Quando se instituiu a liberdade de imprensa, essas divergências de interesses explodiram. Afinal, os problemas eram agora vividos publicamente. No momento em que a luta por mais autonomia se transformou em separação total, em setembro de 1822, os papeis impressos no Rio de Janeiro foram confrontados em províncias como a Bahia, o Maranhão e o Grão-Pará, que só aceitariam a Independência entre julho e agosto de 1823.
Os redatores, importantes para toda aquela agitação, movimentavam um mundo de futuro imprevisível. Muitos eram clérigos ou advogados, alguns ocupavam cargos públicos. Em tempos de acesso facilitado aos prelos, publicizaram demandas políticas controversas. Muitas vezes, terminaram presos, agredidos ou deportados, outros colheram os frutos da nova atividade e elegeram-se para cargos públicos.
A importância de publicar ideias políticas naquele momento pode ser medida pela atuação de alguns personagens. Homens como José da Silva Lisboa (1756-1835), o visconde de Cairu, e José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), depois conhecido como o “patriarca da Independência”, redigiram jornais e folhetos. Até mesmo o imperador Pedro, antes e depois da Independência, escreveu para jornais do Rio de Janeiro.
Enfim, a liberdade de imprensa sacudiu o mundo luso-brasileiro. Ainda que autorizado, o exercício dessa liberdade era uma aventura perigosa, mas fundamental. Ontem e hoje.
Marcelo Cheche Galves é professor da Universidade Estadual do Maranhão, bolsista do
CNPq e autor do livro “Ao público sincero e imparcial”: imprensa e independência na
província do Maranhão (1821-1826) (Editora UEMA/Café & Lápis, 2015). E-mail:
marcelochecheppg@gmail.com [https://orcid.org/0000-0002-7344-9277]
Saiba mais
CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; BASILE, Marcello (org.). Guerra literária: panfletos da Independência (1820-23). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades imperiais (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005.
STARLING, Heloísa Maria Murgel; LIMA, Marcela Telles Elian de. Vozes do Brasil: a linguagem política na Independência (1820-1824). Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2021.
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