A Revolução do Porto sacudiu o império português e exigiu dos bispos no Brasil um posicionamento frente ao constitucionalismo e a independência.
Ítalo Domingos Santirocchi
A Igreja Católica ficou conhecida no século XIX por ter entrado em uma “Santa Aliança”. O objetivo era deter o avanço das revoluções liberais que pipocavam pela Europa e América após a Revolução Francesa (1789-1799), com o fortalecimento do capitalismo e as independências na América Latina. As palavras de ordem revolucionárias eram constituição, liberdade de imprensa, liberdade religiosa, liberdade de pensamento, entre outras. No Império Português, a Revolução Liberal do Porto, de 24 de agosto de 1820, antecedeu a Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822. Mas como os bispos católicos no Brasil reagiram ao movimento revolucionário e ao constitucionalismo? Em sua maioria defenderam a revolução publicamente.
É impossível dividir todos os grupos e projetos políticos daquele tempo em dois lados opostos. A realidade é muito mais complicada. Em linhas gerais, parte das forças políticas que buscavam deter as revoluções liberais se juntaram na Santa Aliança, formada pelo Império Russo, Império Austríaco e Reino da Prússia. Os representantes da Igreja Católica participaram dos debates que formaram a aliança, mas não assinaram o acordo.
O papa buscava uma imagem de neutralidade, mas, essencialmente, precisava de independência e de liberdade para sua ação diplomática e administrativa nos diferentes países. A Igreja Católica estava presente em regiões que haviam abraçado o constitucionalismo ou até mesmo o republicanismo, como aconteceu nas Américas: nas antigas colônias espanholas e portuguesa. Enquanto o papado fazia um discurso geral antirrevolucionário, observava com apreensão os acontecimentos e estabelecia relações com quem detinha o efetivo comando nos diferentes territórios. Mas como ficava a situação nas dioceses e nas paroquias, onde os bispos e os padres deviam tomar uma decisão em relação às revoluções que lhe envolviam?
Nas vésperas da Independência, o Brasil contava com sete dioceses, cujos bispos eram: D. Vicente da Soledade e Castro – Salvador (BA); D. Joaquim de Nossa Senhora da Nazaré – São Luís (MA); Sede Vacante (sem bispo naquele momento) – Olinda (PE); D. José Caetano da Silva Coutinho – Rio de Janeiro (RJ); D. Romualdo de Souza Coelho – Belém (PA), D. Mateus de Abreu Pereira – São Paulo (SP), D. Frei José da Santíssima Trindade – Mariana (MG) e duas prelazias: D. Francisco Ferreira de Azevedo – Goiás (GO); D. Luís de Castro Pereira – Cuiabá (MT).
Vários bispos que governavam essas dioceses se manifestaram oficialmente em relação à revolução liberal, também conhecida como Regeneração da Nação Portuguesa. O documento utilizado pelos bispos, para expressarem suas posições ao clero e aos fiéis, era a Carta Pastoral. Em pesquisa que venho realizando, encontrei as cartas pastorais de seis deles. Todas apoiavam a revolução e a elaboração de uma constituição, desde que se mantivesse a Igreja Católica unida ao estado, como religião oficial.
As pastorais constitucionais, como eu as nomeei, defendiam uma monarquia constitucional e com câmaras eleitas por voto censitário (ou seja, pelos homens livres, que tivessem uma certa renda anual). Essas cartas não concordavam em tudo.
As pastorais dos bispos do Pará, Maranhão e Bahia, defendiam que o poder central deveria permanecer em Lisboa e resistiam, com suas províncias, contra a Independência do Brasil. Pregavam a união entre a Igreja e o Estado, mas com distinção e respeito entre os poderes.
Os bispos da Bahia e do Pará defendiam ferrenhamente o constitucionalismo em suas cartas; segundo D. Romualdo (PA), em sua pastoral de 20 de janeiro de 1822, a adesão do rei à Constituição seria um retorno às leis naturais, elaboradas pelo Autor da Natureza, ou seja, Deus, nas quais o homem se inseria e deveria seguir para a sua felicidade. O povo, então, teria dividido parte da Soberania Natural com o Rei e com os representantes eleitos, que seriam os delegados da nação e representariam a Soberania Nacional, com a função de elaborar a Constituição e as leis. O Rei, a partir desse momento, seria Constitucional, Católico Romano, justo e virtuoso, teria “a segurança do trono, não nas incertas bocas de fogo, e pontas de baionetas; porém sim no coração, na ternura, e no amor da Nação, bases solidas, e que se não minam”.
Pernambuco era a única diocese que estava sem bispo, em sede vacante. Era governada pelo Cabido, ou seja, um colegiado de padres que ajudavam os bispos na administração do território eclesial. Em sua Carta Circular ao Clero, de 21 de maio de 1822, defendiam o Rei D. João VI, após aderir à revolução, “É Constitucional, é Católico Romano, é justo e virtuoso”. Eles inicialmente buscaram ficar em cima do muro, agradando a Lisboa e ao príncipe D. Pedro, no Rio de Janeiro. Com a abertura da Assembleia Constituinte, em 1823, e a outorga da Constituição, em 1824, passaram a apoiar definitivamente a independência. Em relação à união entre a Igreja e o Estado, o Cabido de Olinda defendia sua permanência, mas com o poder espiritual ficando submisso ao poder estatal.
Os bispos do Rio de Janeiro e de Goiás apoiavam não só o constitucionalismo, mas também abertamente a Independência do Brasil. Ambos defendiam a união entre Estado e Igreja, com autonomia dos dois poderes.
Para o bispo do Goiás, em sua pastoral de 4 de agosto de 1822, a população da sua diocese não era obrigada a ficar fiel a um juramento dado às Cortes de Lisboa, que lhes traria dano e ruína. O povo de Goiás deveria, portanto, pegar de volta o poder que Deus lhes deu e dá-lo a um novo representante. Segundo o bispo, o poder dado aos reis “é mediante ‘Populo’ em que reside o poder para comunicar aos Reis; que só um povo livre o pode dar, escolhendo o Rei, como primeiro Magistrado da Nação para o fazer executar”. E o povo, agora, deveria jurar e comunicar esse poder a D. Pedro.
O bispo do Rio de Janeiro sempre esteve ao lado de D. Pedro, abençoando todos os seus atos no caminho que acabou levando a Independência do Brasil, por isso escreveu a seus fiéis, na sua pastoral de 30 de junho de 1822: “A MÃO do Omnipotente, que no ano de 1808 trouxera o Senhor Rei Dom João VI ao Brasil para abrir os seus portos fechados ao comércio das Nações, para o levantar do estado abjecto de Colônia, em que jazia, para o colocar na sublime categoria de Reino a par dos povos livres e civilizados da Europa e da América; esta Mão sempre constante e generosa é a mesma, que agora, no ano de 1822, retém o Príncipe Regente no Brasil para ultimar o ato da sua emancipação e coroar a grande obra da sua felicidade”. A Providência, a Mão de Deus, a Vontade Divina, estava traçando o caminho da Independência, no qual, na opinião do bispo, a família real teria papel central.
Os bispos no Brasil fizeram uma leitura política a partir do contexto das regiões nas quais viviam e pastoreavam. Abraçaram a revolução, o constitucionalismo e posteriormente quase todos aderiram à Independência do Brasil, com exceção de dois, o arcebispo da Bahia, que continuou fiel o governo liberal de Lisboa e o bispo do Maranhão, que, após voltar a Portugal, aderiu ao movimento antirrevolucionário. Em um balanço geral, a Igreja no Brasil aderiu sinceramente ao constitucionalismo. Naquela época, como hoje, religião e política andavam lado a lado.
Ítalo Domingos Santirocchi é professor da Universidade Federal do Maranhão e autor do livro Questão de Consciência (Fino raço/EDUFMA, 2015), sobre as relações entre Igreja e Estado no Brasil Imperial. E-mail: italosantirocch@hotmail.com
Saiba mais
FARIA, Ana Mouta. A hierarquia episcopal e o vintismo. Análise Social, Ann Arbor, v. XXVII, n. 116-117, p. 285-328, 1992. Disponível em: https://bit.ly/3yA7O3m. Acesso em: 13 mai. 2022.
LÓPEZ-BREA, Carlos Rodríguez. La Santa Sede y los movimientos revolucionarios europeos de 1820. Los casos napolitano y español. Ayer, Logroño, n. 45, p. 251-274, 2002. Disponível em: https://bit.ly/37GSU0b. Acesso em: 13 mai. 2022.
SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Do altar à tribuna: os padres políticos na formação do Estado Nacional brasileiro (1823-1841). Tese (Doutorado em História). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: https://bit.ly/3l7vWCB. Acesso em: 13 mai. 2022.
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