Guerra mais violenta que só poderá acabar com o reconhecimento da Independência do Brasil ou com a ruína de ambos os Estados
Gladys Sabina Ribeiro
Na proclamação aos portugueses, de 21 de outubro de 1822, D. Pedro recapitulou o que levou à possível separação de Portugal, que poderia desencadear uma guerra violenta e a ruína de ambos os Estados. Os “bons” portugueses deviam ser considerados “brasileiros.” Os outros deviam sair do país em quatro meses. Em um decreto de 11 de dezembro de 1822, os bens dos portugueses foram sequestrados em nome da segurança e da defesa do país. Eram alvos os lusitanos, constituídos como tais por diferenças políticas e comerciais.
No Centro-Sul, especificamente no Rio de Janeiro, os sequestros foram logo levantados, mesmo antes da regulamentação do assunto pelo Tratado de Paz e Amizade de 29 de agosto de 1825, que reconheceu a autonomização do país. Em 24 de dezembro de 1822, o juiz João José da Veiga pedia esclarecimentos sobre o que devia ser sequestrado, porque, não raro, via os bens serem liberados pelo Imperador.
Reclamava sempre. Em junho de 1823, mencionava não conseguir ter uma noção exata dos saldos apreendidos. Perguntava-se como saberia das somas daqueles negociantes que tinham transações com o Porto e Lisboa; o que faria com os prédios abandonados, em mau estado de conservação; como recolheria os aluguéis; como apaziguaria as brigas entre inquilinos e os seus antigos proprietários sequestrados; o que faria com as dívidas. Os problemas se multiplicavam no Sudeste e atormentavam o juiz que não conseguia cumprir as resoluções sobre o assunto, publicadas prolixamente até o ano 1824.
O Norte e Nordeste tiveram que esperar a resolução do assunto pela Comissão Mista Brasil-Portugal. Esta se pautaria pelo artigo 8º do Tratado e devia usar o regulamento de 14 de setembro de 1827 para julgar a procedência dos casos, tratados pelos artigos 5º, 6º e 7º. Por eles, os súditos de ambos os países teriam direitos equiparados aos de nação mais favorecida; haveria a restituição e a indenização de bens confiscados ou sequestrados examinados pela Comissão Mista, que acolheria as reclamações dos súditos de governo a governo. Existindo o empate, a Grã-Bretanha – mediadora – e os governos envolvidos, indicariam os fundos para os pagamentos e as liquidações necessárias. Os queixosos apresentaram documentos até outubro de 1828. Os comissários reuniram-se regulamente até 4 de dezembro de 1830, quando os trabalhos foram interrompidos e retomados a 28 de novembro de 1834, perdurando até 1842.
Portanto, podemos dividir os processos de sequestro de bens de portugueses em dois tipos: os encontrados no Juizado especial do Rio de Janeiro, que cuidaram de casos ocorridos na província ou que tiveram recursos julgados na Relação existente na Corte, e aqueles resultantes do estabelecido no tratado de 1825, julgados pela Comissão Mista. Entre 1822 e 1828, os negociantes de grosso trato da praça do Rio de Janeiro agiram de forma dissimulada. Solicitavam permissões especiais ao Imperador para levantar os sequestros e saírem do país. Alegavam desde razões relacionadas ao próprio negócio, uma vez que se endureceu o controle sobre as saídas de estrangeiros, até a necessidade de tratamento de saúde em localidades na África e na Ásia.
No balanço final, esses comerciantes do Sudeste quase não foram à Comissão Mista. Os do Norte e Nordeste, com outros interesses e sócios, fizeram muitos pedidos para o levantamento de sequestros, indenizações e exames sobre a sua verdadeira nacionalidade. Dos 509 processos contabilizados nas atas da Comissão, não encontramos registro da origem do reclamante em 167 processos. Tomando os outros 342 como sendo 100% da amostra, as províncias que tiveram mais reclamações foram: Pará, com 15,78%; Maranhão, com 26,6%, Bahia, com 38,88%, Pernambuco e a Corte, com 6,14%; Minas Gerais, com 2,33%; a província do Rio de Janeiro, com 2,04%; São Paulo, com 1,16 %; e menos de 1% para o Rio Grande do Sul, Ceará e Espírito Santo.
A partir destes dados, três aspectos devem ser levados em conta quando pensamos a formação de uma identidade nacional, após a separação de Portugal. Em primeiro lugar, há um número maior de processos justamente onde houve a guerra da Independência. Os interesses dos portugueses do Norte e Nordeste não eram os mesmos daqueles que movimentavam o comércio no Centro-Sul. O que merece investigação mais apurada é Pernambuco e a Corte terem sofrido o mesmo número de sequestros.
Em segundo lugar, dos 188 processos que registraram profissões declaradas (36,93% dos processos), o número de comerciantes que tiveram bens e/ou cargas apresadas e/ou sequestradas foi de 40,42%. Em seguida, somamos 32,97% de empregados na magistratura ou em outros empregos civis, ocupantes de lugares na burocracia do Estado, que solicitavam indenizações por ofício e/ou pensões. Depois destes, computamos aqueles ligados às atividades rurais (11,70%) e que tiveram prejuízos por invasão de suas propriedades, sobretudo nos locais onde a guerra foi mais intensa. Em terceiro, os negociantes que tiveram seus bens sequestrados eram majoritariamente portugueses de nascimento, embora houvesse também ingleses e indivíduos de outras poucas nacionalidades, sobretudo no que dizia respeito a resseguros ou garantias de cargas de navios e bens, incluindo africanos traficados.
Diante da Comissão, ao dar entrada no processo, o reclamante se declarava português ou brasileiro de acordo com interesses econômicos e políticos envolvidos. Contava muito pouco o seu local de nascimento. Naquela conjuntura do Primeiro Reinado, portugueses da Europa foram declarados “brasileiros,” antes de jurarem a Causa do Brasil ou do artigo 4º da Constituição os tornar cidadãos. Assim, o número das reclamações de indivíduos autodeclarados portugueses contra o governo brasileiro era muito superior (55,29%) ao número das realizadas pelos ditos brasileiros contra o governo português (18,87%). Havia também “brasileiros” que solicitaram algum tipo de indenização contra o próprio governo brasileiro.
Vemos uma dança de nacionalidades: portugueses natos que se diziam brasileiros e vice-versa, o que aponta para uma construção identitária não vinculada ao local de nascimento, sim relacionada às motivações econômicas e políticas. Separar-se da Nação portuguesa foi elaboração de longo prazo; envolveu escolhas que levaram à organização do Estado ao redor de interesses econômicos do Centro-Sul, centralizando o governo e promovendo uma guerra contra o Norte. No ano do bicentenário devemos rememorar as Independências e o custo de uma unificação territorial conseguida pela violência e pela força.
Gladys Sabina Ribeiro é professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do livro A liberdade em construção. Identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. 2ª ed. Niterói, EDUFF, 2022. E-mail: gladysribeiro@id.uff.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3041-8200
Saiba mais:
RIBEIRO, Gladys Sabina. Identidade ou Causa Nacional? Uma discussão a partir dos sequestros, tratado e Comissão Mista Brasil-Portugal (1822-1828). In: CARVALHO, José Murilo; PEREIRA, Miriam Halpern; RIBEIRO, Gladys Sabina; VAZ, Maria João. (org.). Linguagens e fronteiras do poder. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, v. 1, p. 186-198.
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