Desde 1822, mulheres negras suplantam a ordem socialmente imposta, ao romperem barreiras para (re)existir. Enquanto corpos e mentes, elas desestabilizam os territórios de exclusão e de estigmas raciais, invadindo casas, corações e pensamentos conservadores, elitistas e racistas
Iamara da Silva Viana
Desde a proclamação da Independência política do Brasil, em 22 de setembro de 1822, negros foram – e são até hoje – excluídos do processo de construção da identidade nacional. Contudo, ao utilizarmos uma lente para aproximar nossos olhares, perceberemos que a mulher, de modo geral, e a mulher negra, mais especificamente, ainda não ocupa determinados espaços. E não só, a mulher negra também fora excluída de alguns ofícios e da política, negando-lhe a possibilidade de ocupar os chamados lugares de poder. Lélia Gonzalez (1935-1994) já apontava tal exclusão, ao pensar a população negra ainda na década de 1980. A mulher negra, entretanto, com seu corpo reduzido tão somente à sexualidade, teve e tem produzido transgressões, ao ocupar espaços e desenvolver pensamentos não subalternizados. Precisamos teorizar sobre o sentido amplificado de tais transgressões, as corpóreas, as imagéticas, as morais e as políticas. A questão não é nova, sabemos, mas, neste momento de efeméride, nos perguntamos: quais os lugares sociais ocupados pela mulher negra, após 200 anos da Independência do Brasil?
Para além de coisas e palavras, a mulher negra pode ser pensada por meio de suas experiências e seus horizontes envolventes. Se, no passado, na sociedade escravista, essa mulher fora propriedade de outrem, escravizada, logo, não possuidora de direitos, qual a realidade que se apresenta para ela hoje? Afinal, na senzala ou na casa grande, seu trabalho foi fundamental para a construção da sociedade brasileira. O corpo negro feminino foi exposto a diferentes violências – físicas, morais e psicológicas – muitas das quais as diferentes fontes e pesquisas não computam, nem demonstram. Nesse sentido, o historiador precisa localizar, em termos empíricos e teóricos, tais tópicas da mulher negra. Entretanto, as marcas do passado escravista podem ser percebidas em pesquisas do IBGE, em que mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio, as que mais abandonam a escola básica, as que têm os menores salários, mesmo quando rompem barreiras sociais construídas historicamente e adentram em um curso universitário. Desse modo, são vistas e pensadas como passíveis de crimes, roubos, ainda hoje, e, portanto, criminosas em potencial ou não possuidoras de poder econômico, político e cultural.
Embora o termo independência seja um substantivo feminino que indica condição de liberdade, a independência do nosso país, em 1822, não trouxe mudança à condição jurídica de mulheres escravizadas. Pesquisas e leituras nos levam a pensar a mulher escravizada – africana ou descendente – como detentora de dupla base forjadora de sua constituição identitária, mas também da própria sociedade brasileira. A mulher africana escravizada, que chegou às Américas por meio da diáspora forçada, se tornou produtora e reprodutora, ao mesmo tempo, daquela e naquela sociedade. Produtora, pois ocupava distintas funções nos mundos rurais e urbanos, desempenhando ofícios nas lavouras, nas casas grandes e nas cidades como escravizada ao ganho. Reprodutora, principalmente a partir das leis de fim do tráfico (1831 e 1850), posto que ainda a escravidão continuasse vigorando fortemente em terras brasileiras. Seus filhos, a partir de então, poderiam ocupar o espaço problemático de reposição da mão de obra para ricos fazendeiros. E, não por acaso, alguns manuais de medicina apontam pedagogicamente como o senhor poderia incentivar suas escravizadas a terem filhos: com presentes ou premiações.
A relevância do papel das mulheres negras africanas escravizadas e de sua descendência, pode ser percebida não apenas nos diferentes ofícios que elas dominavam, mas também nas escolhas e no protagonismo nas pequenas margens tangíveis numa sociedade escravista. Sendo propriedade, poderia ela se negar aos mandos e desmandos senhoriais? Caetana, ainda na primeira metade do século XIX, disse “não” ao seu senhor, transgredira o sistema e o controle senhorial, ao se recusar a manter o casamento imposto pelo seu proprietário. O processo de nulidade de seu casamento – o único no qual escravizados estiveram envolvidos – serviu de fonte para o livro Caetana diz não, da historiadora Sandra Lauderdale Graham, publicado em 2005. Caetana transgrediu uma das bases da sociedade escravista: a família no modelo católico. Isso porque seu casamento havia seguido todos os trâmites religiosos da época, mas contra a sua vontade, e o seu “não” abalou toda a hierarquia masculina daquela sociedade patriarcal.
Nem tudo, no entanto, eram flores. A negação de uma escravizada às ordens estabelecidas pelo seu proprietário ou proprietária, rompiam os paradigmas sociais. De tal modo que, muitas delas não tiveram direito à maternidade e à amamentação. A cultura que existia muito antes do tráfico transatlântico, chegou às américas, onde mulheres cativas e o aleitamento forjaram comércio profícuo para diferentes proprietários(as). Em alguns casos, aquelas mulheres tiveram seus filhos retirados de seus cuidados e foram alugadas para amamentar outra criança, branca, filha(o) de algum proprietário/a, uma vez que mulheres brancas não alimentavam seus filhos(as). O comércio que alimentava crianças brancas, assolava outras com a fome, as negras, filhas e filhos das mulheres cativas. O uso de nutrizes no comércio de leite foi intenso no século XIX no Brasil.
Outras mulheres transgrediram e continuam a fazê-lo na sociedade brasileira. Maria Firmina dos Reis (1822-1917) ao descrever o escravizado de modo humanizado, no romance Úrsula (1859), rompeu barreiras culturais, tornando-se pioneira na escrita antiescravista e antirracista. A primeira romancista brasileira também ocupou o primeiro lugar no pódio de professora concursada do município de Guimarães no Maranhão. A historiadora Beatriz do Nascimento (1942-1995) foi professora, roteirista, poeta e ativista pelos direitos humanos de negros e de mulheres, foi transgressora ao ocupar lugares predominantemente masculinos.
Mulheres negras na sociedade brasileira contemporânea, após 200 anos da Independência, transgrediram e conquistaram espaços antes inimagináveis. Superaram homens em anos de escolarização e adentraram no espaço acadêmico. Inversamente, isso não se converteu também em melhores salários ou cargos. Nem mesmo representou maior dignidade ou respeito. Mulheres negras ainda hoje são as maiores vítimas de violência doméstica e de feminicídio. Continuam a dizer “não”, todavia, nem sempre são ouvidas, segundo pesquisas do IPEA. Entre os anos de 2001 e 2011, constatou-se que a maioria das vítimas de feminicídio são jovens e negras (31% tem entre 20 e 19 anos, e 61% é preta ou parda), cujas mortes ocorrem no interior de suas casas, o que demostra que essa violência é geralmente infligida por parceiros ou ex-parceiros. As Caetanas do presente continuam a dizer “não”, a transgredir a ordem imposta por uma sociedade marcada pelo racismo, o machismo e o sexismo, mas poucas são ouvidas ou respeitadas em suas escolhas. Ainda que ocupem lugares de poder, como a vereadora Marielle Franco (1979-2018), do Rio de Janeiro, correm o risco de serem assassinadas por cumprir seus papéis. A brutalidade do seu assassinato chama a atenção para o fato de ser ela uma mulher preta, favelada, lésbica, que rompeu paradigmas sociais solidamente construídos ao longo do processo histórico de formação da sociedade brasileira. Mas seu corpo preto não teve direito à liberdade em um país independente. A mulher negra é fundamentalmente espaço e tempo de transgressão.
Iamara da Silva Viana é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), da PUC-Rio e do PPGHC/UFRJ. E-mail: ia.sviana@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7290-4995
Saiba mais
XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana Barretos; GOMES, Flávio. Mulheres Negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012.
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
MACHADO, Maria Helena P. T.; BRITO, Luciana da Cruz; VIANA, Iamara da Silva; GOMES, Flávio dos Santos. Ventres Livres? Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Editora Unesp, 2021.
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