As crises políticas nas Américas portuguesa e espanhola envolveram as terras amazônicas, atravessaram fronteiras e alimentaram diferentes leituras e temores.
Carlos Augusto Bastos
A Amazônia está na ordem do dia. É um tema que sempre chama a atenção dos meios de comunicação, frequentemente com denúncias sobre a destruição do meio ambiente e a violência contra suas populações mais vulneráveis. O debate sobre o futuro do país passa pelas decisões sobre como lidar com a diversidade natural, cultural e social da região. Mas não devemos esquecer que a Amazônia é também um enorme espaço internacional, envolvendo oito países (Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia e Brasil) e um departamento ultramarino europeu (Guiana Francesa). Nunca foi uma tarefa simples administrar esse espaço, vigiar seus limites territoriais, controlar a circulação de pessoas e produtos pelos rios e florestas. Essas questões também foram importantes durante as independências ibero-americanas, quando as relações entre portugueses e espanhóis nas fronteiras amazônicas foram marcadas por tensões e desconfianças, e também por aproximações e contatos frequentes.
No começo do XIX, o que hoje chamaríamos de “Amazônia” (é bom lembrar que esse termo ainda não era utilizado para se referir a uma região específica) era um espaço não delimitado em suas fronteiras políticas, apesar das tentativas de acordos diplomáticos e demarcação de limites no século XVIII. Ainda havia muita disputa sobre os limites do Estado do Grão-Pará e Rio Negro com a vizinhança hispano-americana (Capitania Geral da Venezuela, Novo Reino de Granada, Audiência de Quito e Vice-Reino do Peru). A relação com os principais habitantes dessa área, as populações indígenas, também era uma questão delicada. Algumas comunidades indígenas estabeleciam alianças com colonos; às vezes, essas alianças eram rompidas; outras comunidades não estavam sob a tutela dos poderes coloniais, e persistia a escravização ilegal de indígenas. Era também muito difícil controlar a circulação de pessoas, produtos e informações nessas fronteiras.
Todas essas questões apareceram na forma como portugueses e espanhóis lidaram com as crises políticas nos limites de suas “Amazônias” a partir de 1808 e ao longo da década de 1810. Era preciso ficar atento para o que se passava no outro lado da fronteira, e como isso poderia impactar no seu território. Tanto portugueses quanto espanhóis, nas fortificações e povoações limítrofes, buscaram saber o estado político e as forças militares do vizinho. Os contatos que oficiais e soldados ibéricos estabeleciam cotidianamente entre si nos postos da fronteira, às vezes em “visitas” para enviar ofícios ou comprar produtos, eram ocasiões importantes para espionar o que se passava. Acolher soldados desertores era outra tática, pois eles costumavam entregar o que sabiam (ou diziam saber) sobre as forças militares de onde tinham fugido. Também era possível saber essas informações a partir dos indígenas que transitavam na região, que por vezes revelavam assuntos importantes para os planejamentos de defesa.
No entanto, a circulação dessas informações deveria ficar contida ao círculo das autoridades responsáveis pela administração dessas fronteiras, evitando-se que algumas notícias se espalhassem. Por exemplo: no lado espanhol, era importante evitar que os portugueses disseminassem propaganda a favor das pretensões da princesa Carlota Joaquina, que buscava ser reconhecida como legítima herdeira da Coroa espanhola. Mas de fato a defesa dos interesses de Carlota Joaquina (e da Coroa lusa) acabou circulando na Amazônia espanhola, gerando diferentes interpretações, às vezes favoráveis à ideia. Em 1812, um oficial espanhol no rio Napo escreveu concordar com a ideia de reconhecimento de Carlota Joaquina como regente, considerando que isso facilitaria o apoio militar português à defesa da causa monárquica espanhola naquela região.
Existia também o temor, entre os espanhóis, de que a crise monárquica vivida na América possibilitasse o expansionismo militar português. José Fernando de Abascal, vice-rei do Peru (1808-1816) e ferrenho defensor da causa monárquica, havia determinado que as autoridades nas zonas amazônicas ficassem de olho nos portugueses, evitando possíveis ataques. Abascal entendia ser possível que os portugueses ameaçassem as fronteiras amazônicas da mesma forma como estavam fazendo no sul, com as intervenções na Banda Oriental.
Outra questão que despertava desconfiança era a presença de comerciantes portugueses em rios amazônicos do lado espanhol, como Marañón, Ucayali, Napo e Putumayo. Muitos desses homens que se dedicavam ao comércio eram também militares ou autoridades políticas na capitania do Rio Negro. Os espanhóis os acusavam de contrabandear produtos da floresta, como cacau e salsaparrilha, e de realizar a escravização ilegal de indígenas. No entanto, havia também alianças com os espanhóis, na medida em que os comerciantes portugueses eram importantes fornecedores de produtos como tecidos, ferramentas e diversos artigos europeus.
Os portugueses no extremo norte também estavam atentos para o que ocorria nas fronteiras amazônicas da América espanhola. Existiam ordens de que se impedisse a circulação na região de “papéis incendiários” (gazetas ou outros escritos) dos rebeldes hispano-americanos, que poderiam divulgar ideias contrárias ao sistema monárquico. Os comandantes dos postos militares na capitania do Rio Negro também tinham que estar em prontidão para impedir a entrada de possíveis emissários dos rebeldes. Nos limites com a Venezuela, essa questão era particularmente delicada. Em 1817, as forças militares favoráveis à independência tomaram a cidade de Angostura, às margens do rio Orinoco. Assim, os patriotas dominaram a navegação desse importante rio e fizeram da província da Guayana, vizinha à capitania do Rio Negro, uma base de luta contra os realistas. Em 1819, os patriotas entraram em contato com o comandante do forte português de São José de Marabitanas, localizado no Alto Rio Negro, limítrofe com a Venezuela. A ideia era negociar com seu comandante o reconhecimento do governo da recém fundada República da Colômbia (que a historiografia chamaria depois de “Grã-Colômbia”) pelo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (que fora criado em 1815).
Tudo isso foi muito mal visto pelos governos do Rio Negro e do Grão-Pará, que desautorizaram o comandante de Marabitanas, argumentando que essas negociações só deveriam ser feitas pela Corte no Rio de Janeiro. Mas a Corte tinha lá suas ressalvas, principalmente porque recebera informações sobre possíveis encontros entre representantes de Simón Bolívar e exilados da Revolução Pernambucana de 1817, o que acendeu o alerta sobre a possibilidade de apoio de patriotas hispano-americanos à causa republicana no Brasil. Isso alimentou inclusive a especulação de que Bolívar pudesse invadir a América lusa, aproveitando a comunicação entre os rios Orinoco e Negro pelo canal do Cassiquiare para atacar os portugueses. Mas na República da Colômbia também existiam receios. Em 1820, um emissário dos patriotas hispano-americanos comentou com soldados de Marabitanas sobre as desconfianças quanto a uma possível união de portugueses e espanhóis para atacar os republicanos.
Preocupações semelhantes ocorriam em outros limites amazônicos. Entre os anos de 1820 e 1821, a guerra de independência sacudiu o território do Peru, com vitórias das forças independentistas. Essas lutas se interiorizaram, atingindo as terras amazônicas, como a província de Maynas, na fronteira com a América portuguesa. A vitória dos patriotas levou a uma fuga de monarquistas para o lado português. Um espanhol que fugiu para a capitania do Rio Negro contou aos portugueses sobre o estado da força militar dos “insurgentes,” que somariam mais de mil soldados. Isso despertou a atenção dos portugueses: era possível que tal força não se destinasse somente à guerra contra os realistas. Talvez os patriotas visassem também atacar o forte português de Tabatinga, no rio Solimões e fronteira com o Peru, já que a posse sobre ele era um ponto de discórdia na delimitação da fronteira desde o XVIII.
Em 1822, o governador das armas do Grão-Pará, José Maria de Moura, alarmou-se com essas informações. Traçou então um plano para enviar uma grande expedição militar para proteger as fortificações nas fronteiras com a América espanhola; no entanto, esse plano não prosperou. No ano seguinte, Moura voltou a tratar do tema das fronteiras, mas considerando as possíveis vantagens para os portugueses. Ele defendeu o reconhecimento diplomático das “províncias espanholas insurgentes” vizinhas para estabelecer acordos de navegação e comerciais com esses países, o que fortaleceria o comércio entre Grão-Pará e Rio Negro e os países vizinhos. Para Moura, era possível “salvar” uma parte da América portuguesa, reunindo as províncias fiéis à monarquia lusa e desenvolvendo o comércio com os novos países do continente.
O agravamento da crise que as monarquias espanhola e portuguesa viviam levou à busca de soluções que visavam acordos entre os vizinhos. Em 1823, o clérigo espanhol José Maria Padilla, um defensor da monarquia que havia fugido de Maynas para o lado português, publicou uma exposição das lutas políticas no Peru que trazia um plano de reconquista do norte do vice-reino por meio de uma expedição militar monarquista que entraria pelos rios amazônicos. Para isso, Padilla defendeu acordos diplomáticos e comerciais com os portugueses para que ajudassem os espanhóis.
A anexação do Grão-Pará e do Rio Negro ao Império do Brasil, a partir de agosto de 1823, anulou os planos dos monarquistas espanhóis e portugueses. A partir da década de 1820, e durante o século XIX, ocorre o longo e conflituoso processo de construção das fronteiras nacionais sul-americanas no espaço amazônico. O lugar dessas “Amazônias” nas novas nações foi um desafio que envolveu diferentes agentes políticos e econômicos, populações locais e migrantes. Um processo também marcado por exclusões e violências que afetaram o meio ambiente e as comunidades amazônidas. De certa forma, esse desafio continua.
Carlos Augusto Bastos é professor da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará/Campus Ananindeua e do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistoria).
Referências bibliográficas
BASTOS, Carlos Augusto. No Limiar dos Impérios: a fronteira entre a Capitania do Rio Negro e a Província de Maynas. Projetos, circulações e experiências (c.1780-c.1820). São Paulo: HUCITEC, 2017.
JAVIER CASTRO, Oscar. Circulación de informaciones y experiências entre Brasil, Nueva Granada y Venezuela en la formación de la República de Colombia, 1817-1819. Procesos-Revista Ecuatoriana de Historia, n. 53, p. 45-76, jan.–jul. 2021.
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