Muitas vezes considerada pacífica, a formação do Brasil também foi a erupção de violentos movimentos de insurgência.
Murillo Dias Winter
Em um panfleto anônimo que circulava pelo Rio de Janeiro, em julho de 1822, lia-se: “O Brasil, Senhores (vós não o ignorais) oferecia um quadro sombrio, e assustador: a cada momento um vulcão infernal ameaçava suas belas Províncias: espíritos dominados pela discórdia forjavam sua ruína inevitável”. A metáfora de um vulcão em erupção era uma das preferidas dos jornalistas e políticos, durante a primeira metade do século XIX. Essa figura de linguagem é reveladora para compreender a formação brasileira: por baixo de uma superfície aparentemente calma, uma série de movimentos de contestação estavam em agitação e entravam periodicamente em violentas erupções. Afinal, a construção do Estado e da nação do Brasil, iniciada em 1822, foi um processo longo, conflitivo e de resultado incerto até, ao menos, o fim da década de 1840.
Assim, é importante compreender que a independência do Brasil, da maneira como aconteceu e que nós conhecemos hoje, foi apenas uma entre as diferentes possibilidades na época. Essa pluralidade era composta por um mosaico de regiões e variados agentes políticos. A construção da unidade territorial e política, que reconhecemos com facilidade atualmente, sofreu fortes contestações em diferentes províncias do Brasil. Essas divergências sobre o futuro foram colocadas em disputa em discursos, jornais, panfletos e, também, nos campos de batalha. As guerras de independência do Brasil aconteceram na Bahia, Pará, Piauí, Maranhão e na província Cisplatina (atual Uruguai). Somados todos esses espaços com os cercos, batalhas na água e na terra firme, os conflitos envolveram em torno de 70 mil soldados, números expressivos para uma população que, em 1822, somava aproximadamente 3 milhões e 308 mil habitantes.
Ainda que pacificados e com a vitória do projeto unitário liderado por D. Pedro, a tensão política nunca foi completamente dissipada e esse vulcão teve novas erupções. Não é à toa que a legislação vigente, uma herança lusitana, previa as tentativas de rebelião e sedição por parte dos rebeldes, podendo ser condenados pelo crime de lesa-majestade. A punição era uma execução pública cruel e o confisco de bens, justamente o que ocorreu com Frei Caneca (1775-1825), político e religioso fuzilado por ser uma das principais lideranças da Confederação do Equador (1824), movimento de insurgência que a partir de Pernambuco buscava criar uma república independente no norte do Brasil.
Durante o Período Regencial (1831-1840), quando D. Pedro havia retornado para Portugal e seu filho não tinha idade legal para assumir o trono, os redatores do Diário do Rio de Janeiro, em 18 de fevereiro de 1838, alertavam: “O vulcão anárquico tem feito novas explosões. A época de sangue começa agora”. Neste período, diferentes partes do território vivenciaram encarniçados conflitos, especialmente as regiões periféricas que apresentavam projetos de futuro que contestavam a autoridade central do Brasil Império por meio de alternativas mais populares como a Cabanagem (1835-1840) e a Balaiada (1838-1841), ocorridas no Pará e no Maranhão respectivamente, passando pela revolta escrava dos Malês (1835) em Salvador, até a Guerra dos Farrapos (1835-1845) liderada por latifundiários do Rio Grande do Sul e a Sabinada (1837-1838), conduzida por uma classe média descontente na Bahia. Mesmo derrotadas, essas insurgências criaram um repertório comum de experiências, vocabulário e ações políticas, ajudando a moldar o Brasil que conhecemos.
Envolvido nesses sangrentos confrontos, o Brasil, portanto, não era uma exceção pacífica em meio a um violento período de guerras civis, ao contrário do que muito se afirma. O país estava, de fato, conectado decisivamente com um mundo em ebulição. Com o fim das Guerras Napoleônicas, que devastaram a Europa entre 1803 e 1815, cerca de 2 milhões de soldados se viram sem atividade e aproximadamente 20 mil deles movidos pelo desemprego, por um espírito de aventura ou pela propagação de sua ideologia atravessaram o Oceano Atlântico para lutar no continente americano, inclusive algumas centenas em solo brasileiro. Com essa desmobilização muitos armamentos também foram desembarcados no Brasil recém-independente, que se tornou um campeão de compras de armas, atingindo números como 150 mil mosquetes adquiridos da Inglaterra.
Essas ligações não se davam exclusivamente por meio de homens e armas, mas igualmente por meio de ideias e informações. Em um tempo cuja comunicação não acontecia pela internet, celular, rádio ou televisão, as notícias viajavam nos navios. As correspondências e os jornais se misturavam com os burburinhos, as fofocas e os boatos nas zonas portuárias das cidades brasileiras. Não era difícil, por exemplo, encontrar em Salvador, jornais de Londres e Nova York, ouvir comentários de marinheiros de Buenos Aires e fazer comércio com navios espanhóis que também haviam feito escala em Recife e em Rio Grande. Em um mundo cada vez mais globalizado, as redes de comércio em ascensão também eram rotas de comunicação. As notícias do mar eram levadas para a cidade e, assim, encontrando os diversos interessados em seu conteúdo, inclusive aqueles que poderiam ou planejavam contestar as autoridades. Informações que eram acompanhadas com atenção igualmente pelos governantes, servindo como exemplo daquilo que poderia ser feito e aquilo que deveria ser evitado para impedir as insurgências em terras brasileiras.
Era um mundo violento e em transformação, que a sua maneira e com as suas particularidades o Brasil também se inseria. Considerar a independência do Brasil como um longo processo, com várias possibilidades de futuro, muitas vezes concorrentes entre si e violentamente reprimidas, é compreender não apenas o que foi, mas também aquilo que poderia ter sido e ajudou a construir através da violência e da guerra o Brasil que conhecemos 200 anos depois.
Murillo Dias Winter é pós-doutorando na USP, com financiamento da FAPESP e autor do livro Imprensa periódica e a construção da identidade Oriental (Província Cisplatina – 1821-1828) (Fi Editora, 2018). E-mail: murillodiaswinter@hotmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5163-7202
Saiba mais:
DANTAS, Monica Duarte. Revoltas, motins, revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.
MOREL, Marco. Frei Caneca: entre Marília e a pátria. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
PIMENTA, João Paulo. Independência do Brasil. São Paulo: Contexto, 2022.
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