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  • Foto do escritorAna Sara Cortez Irffi

“CABRA GENTE BRAZILEIRA”

Atualizado: 17 de ago. de 2022

Na época da Independência, a revolta dos “Cerca Igrejas” – um movimento das camadas populares, com a participação dos cabras – agitou as ruas e marcou a construção do Império do Brasil

Ana Sara Cortez Irffi




No dia 5 de agosto de 1821, na comarca de Crato, no Ceará, um “grito de terror se ouviu” quando cerca de 800 cabras invadiram a paroquia dessa vila. Ali acontecia a reunião da junta eleitoral, que devia designar os eleitores aptos a participar da eleição geral e fazer o juramento à Constituinte. Considerado parte do processo de Independência no Ceará, esse evento ficou marcado pela investida de camponeses, chamados de cabras pela elite senhorial, que reivindicavam participação nas decisões e eleições políticas.


A “rebelião”, conhecida como movimento dos “Cerca Igrejas”, ocorreu na capitania do Ceará e se concentrou principalmente nas vilas do Crato, Jardim e Icó. Sua denominação remetia à prática dos “rebeldes” de cercarem as igrejas e invadi-las para impedir a votação, ameaçar eleitores, destruir urnas e demais materiais de votação. Anos mais tarde, em 1830, a participação política dos camponeses nesses eventos foi destacada pela elite local como a caracterização de um “Império dos cabras”, que se opunha à Independência e ao Império do Brasil.


Uma das leituras sobre a revolta é que ela foi deflagrada pelo capitão-mor do Crato, José Pereira Filgueiras, descendente de português, militar e proprietário de terras, que se manifestava publicamente contra o constitucionalismo e teria desencadeado uma reação contra as propostas liberais para a Independência, evidenciando disputas e posicionamentos políticos conflitantes na Capitania. Mas o movimento ganhou destaque mesmo pela participação popular dos homens de sítio.


É preciso entender que, como resultado das reações ocorridas com a Revolução do Porto, em 1820, e o retorno de Dom João VI para Portugal, no Ceará, aconteceram manifestações com tumultos e protestos no Crato e em Jardim, quando se realizava a escolha dos deputados provinciais para as Cortes de Lisboa. No dia a dia dessas vilas, pequenos ajuntamentos de cabras armados percorreram as ruas das vilas de toda a comarca, gritando vivas a El Rei, a nosso senhor Jesus Cristo, à religião, à Nossa Senhora e morte à “nova lei”. Como consequência, o medo se espalhou entre aqueles que anunciavam o novo governo.


Rapidamente, toda a comarca do Crato estava “infestada da cabroeira” armada, cerca de 16 mil homens sob o comando de Filgueiras e do Major Ferreira de Sousa. Por várias vezes, as eleições da comarca, que deveriam escolher os representantes da província nas Cortes de Lisboa, foram remarcadas, pois as igrejas, local das votações, foram cercadas pelos cabras armados.


A notícia de que mais de 800 Cabras armados assaltaram a vila, dizendo que vinham matar o Coronel Comandante Geral, por ter obrigado o seu Capitão-mor e o Coronel de Milícia a assinarem a “lei do Diabo”, era impressionante às elites locais, sobretudo a que se opunha ao governo português.


Negros, indígenas e mestiços da região, armados de espingardas, foices e facões, que passaram a cercar e invadir as igrejas para impedir as eleições de 1821, passaram a ser chamados de cabras. Desceram dos sítios e pés de serra e foram à igreja reivindicar a manutenção de tradições, seus costumes em comum.


A participação das populações pobres da Comarca de Crato nessas manifestações precisa ser compreendida com cuidado. Os cabras não eram manipulados por Pereira Filgueiras, eles foram instigados por seu discurso: que a ascensão de um Estado liberal anularia a proteção paternalista do monarca ao pobre. Um discurso que tinha o intuito de angariar o apoio popular.


Os cabras, na verdade, lutavam porque percebiam uma evidente ameaça à sua liberdade, com possibilidade de escravização pelos senhores de terras, pela tomada de suas terras e degradação de suas condições de vida. Em sua compreensão, o braço do Estado, personificado pelas elites locais, os alcançaria – sem o rei, o poder real, que os pudesse regular. Por isso, os cabras lutaram pela manutenção das suas tradições e costumes, como resistência à independência que vinha do litoral. Também por sua maneira de lidar com o território, sem fronteiras para suas atividades e acordos.


O medo das elites estava na fragilidade do Império Brasileiro frente à fragmentação da América Espanhola em várias repúblicas, mas também na fragilização marcada pela falta de acordo da elite senhorial, dividida em partidos e filosofias políticas, frente à unidade ou ao acordo das populações de cor em manifestar e reivindicar seus interesses.


Em carta de 1830 ao Diário de Pernambuco, um anônimo traduziu o medo que colocou liberais e conservadores num mesmo lado político: contra o Império dos cabras. Segundo ele, todos “ralhavam” contra a Independência, chamando o Brasil “Imperio dos cabras, e macacos”, e que eram contra a Independência, como foi parafraseado no estribilho do hino:


“Cabra gente Brazileira

Descendente de Guine

Trocárão as sinco Chagas

Pelas folhas de café”


Tal receio explica a recorrente referência às populações camponesas como perigosas e rudes pelos habitantes que se consideravam pertencentes à elite senhorial daquela região. Isso se dava em uma sociedade desenhada a partir de cima, divisando os cidadãos honrados e “probos” (os homens do governo) das massas populares, cuja participação política era negada no processo de independência e na formação da nação brasileira. A participação dos cabras na Independência no Ceará foi chamada de Revolta dos “Cerca Igrejas” numa negação à sua cultura política, percebidos como massa de manobra, com suas ações criminalizadas, tanto por liberais como pelos conservadores.


A participação dos cabras nas lutas de liberais e conservadores deve ser entendida como era, de fato: o aproveitamento da luta que interessava a esses camponeses. Nem massa de manobra, nem fanáticos, o chamado movimento dos “Cerca Igrejas” era a participação dos cabras no processo de independência no Ceará. Era o estabelecimento de relações dos cabras com o território em que viviam e os poderes nele constituídos. Era a defesa deles mesmos, de suas tradições e memória.


Nesses 200 anos de Independência do Brasil, devemos um Viva! à Cabra Gente Brasileira!!!


Ana Sara Cortez Irffi é professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e autora do livro “Cabras, caboclos, negros e mulatos – a família escrava no Cariri Cearense (1850-1884). E-mail: anacortezirffi@ufc.br. Orcid:https://orcid.org/0000-0002-0111-8196.


Saiba Mais

ARAÚJO, Reginaldo A. A parte no partido: relações de poder e política na formação do Estado Nacional Brasileiro, na província do Ceará (1821-1841). 2018. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2018.


CORTEZ, Ana Sara R P. O Cabra do Cariri Cearense: a invenção de um conceito oitocentista. 2015. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2015.


PORFÍRIO, F. Weber P. (Re)pensando a nação: a Confederação do Equador através dos jornais “O spectador brasileiro” (RJ) e o “Diário do governo do Ceará” em 1824. 2019. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2019.


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