Esquecidos pela historiografia, saiba quem foram alguns dos “negros patriotas” que militaram na época da independência.
Luiz Geraldo Silva
Já ouviu falar de Pedro da Silva Pedroso ou de Agostinho Bezerra Cavalcante e Souza? E os nomes de Emiliano Felipe Benício Mundurucu e Antônio Joaquim da Costa Ribeiro, lhe soam familiar? Pedroso, Cavalcante e Souza, Mundurucu e Ribeiro revelam importantes traços em comum: todos eles tiveram relações profundas com eventos capitais da Independência do Brasil, a exemplo da revolução de 1817 ou da decisão, tomada em janeiro de 1822, de o príncipe D. Pedro permanecer no Brasil. Outros traços importantes se referem a que todos eram militares de linha ou milicianos e exerciam ofícios artesanais – como de alfaiate, músico ou sapateiro. Finalmente: todos eram afrodescendentes, isto é, “pretos, “pardos” ou “crioulos”, como se dizia na época, o que significa que seus ascendentes maternos ou paternos eram africanos e, de algum modo, vinculados à escravidão.
Portanto, o status desses indivíduos na sociedade brasileira da época da independência também era, em última análise, associado ao cativeiro. Por essa razão, pesava sobre eles a condição de desigual num contexto em que a noção de igualdade conferia acesso à representação política àqueles que tomassem parte nas novas nações que então se prefiguravam, baseadas na soberania do povo, e não mais na do monarca ou soberano.
Desde a Conjuração Baiana de 1798, chegando até a abdicação do imperador, em 1831, sabe-se que esses “pardos” e “pretos” tiveram conhecimento das revoluções democráticas que tiveram curso nos EUA, na França, em Saint-Domingue e no Caribe espanhol. Em vários momentos eles se referiram a esses eventos e tiveram curiosidade em saber sobre eles: em 1805, por exemplo, milicianos afrodescendentes do Rio de Janeiro usavam no peito efígies de Dessalines, imperador do Haiti. Em 1818, os irmãos “pardos” Dorneles e Barbosa, ambos milicianos, alfaiates e moradores no Recife, perguntaram desavisadamente a um espião “como viviam os rebeldes de Saint-Domingue.”
Um número ainda não calculado de africanos escravos e, sobretudo, de afrodescendentes libertos e livres tiveram papel saliente na defesa militar, na condução e no destino final da república criada em 1817 em Pernambuco. Pedro da Silva Pedroso (1770-1849), por exemplo, destacou-se na ofensiva de deposição do governador Montenegro e, no plano político, ressalta-se sua ação enérgica na vitória do partido republicano sobre os monarquistas constitucionais. Frei Caneca escreveu em 1823 que Pedroso, na primeira reunião do governo provisório, realizada a 7 de março de 1817, “quis atravessar com a espada e matar a José Luís de Mendonça porque este fizera a moção de se estabelecer um reino constitucional em lugar de uma república”. Uma vez que se tornou pública sua fama de “principal herói militar” de 1817, Pedroso foi investido no cargo de coronel do exército republicano e, durante o processo de independência, foi governador de armas da província de Pernambuco (1822-1823).
Sua atuação em favor da república contradiz, todavia, sua adesão incondicional ao projeto imperial, que o levou, após liderar um motim no Recife, em fevereiro de 1823, a se aproximar de D. Pedro I. Foi graças a essa proximidade que Pedroso, então residindo no Rio de Janeiro, foi incumbido pelo imperador de debelar as forças da Confederação do Equador (1824). Curiosamente, Pedroso também esteve entre os militares que, em abril de 1831, conduziram D. Pedro I ao exílio – o que demostra o quão tortuoso foi sua trajetória pessoal.
Dois outros milicianos destacaram-se na Confederação do Equador – o “preto” Agostinho Bezerra Cavalcante e Souza (1788-1825) e o “pardo” Emiliano Felipe Benício Mundurucu (1792-1863). Ambos lutaram contra a constituição outorgada do Império do Brasil e a favor do novo projeto republicano e separatista. Preso em fins de 1824, Agostinho Bezerra acabou enforcado em março de 1825, ao passo que Mundurucu seguiu por caminhos “atlânticos”: em dezembro de 1824, embarcou em navio norte-americano e se refugiou em Boston. Em 1825, fez breve visita ao Haiti e, em 1826, desembarca em Puerto Cabello, na Venezuela, onde se alista nos exércitos bolivarianos. Mundurucu regressa a Boston em 1827. Em 1836, quando obtém anistia, retorna ao Brasil, onde tenta se estabelecer como comandante de uma fortaleza. No entanto, vítima de sua antiga militância, tem seu posto negado. Em 1841, acaba retornando aos EUA, onde se torna um eminente abolicionista.
Embora identificadas com a luta pela igualdade política, essas trajetórias não conseguem, contudo, ocultar tensões que sacudiam as personalidades desses indivíduos. Afinal, eles viviam num contexto de transformações profundas, no qual aspirações do passado e projetos de futuro se mesclavam. O miliciano “pardo” José do Ó Barbosa, a quem coube costurar o estandarte da república de Pernambuco, em 1817, jamais abriu mão de possuir o escravo Melchior, o qual também foi acusado de se juntar às hostes revolucionárias. Após renegar a monarquia durante a revolução, Barbosa envergou, durante todo o tempo que esteve preso, a sua farda de capitão do Terço de Pardos. Por sua vez, enquanto esteve no Brasil entre 1837 e 1841 ao lado dos filhos e da esposa norte-americana, Harriet Jardine, o mais tarde abolicionista Emiliano Mundurucu sempre teve a companhia de um escravo. Em abril de 1840, ele obteve um hábito de ordem militar, a de Avis, e pareceu bastante satisfeito com a distinção que lhe foi atribuída pelo governo imperial.
O caso dos afrodescendentes paulistas também é sintomático dessas tensões internas aos indivíduos que confrontavam a velha e a nova ordem. Como se sabe, em setembro de 1821 as cortes enviaram ao Rio de Janeiro uma tropa de 1.200 soldados sob o intuito de forçar o retorno de D. Pedro I a Lisboa. O príncipe, em resposta, solicitou apoio militar às províncias de Minas Gerais e São Paulo, de onde seguiram 1.100 milicianos, dos quais 69 eram membros do Regimento dos Úteis, formado por “pardos”. Dentre eles, João Alves, carpinteiro, Bento da Silva e Antônio Joaquim de Almeida, sapateiros, e o alfaiate Antônio Joaquim da Costa Ribeiro, receberam condecorações e promoções, bem como solicitaram hábitos da Ordem de Cristo.
Essas tensões, típicas da fase da transição, também marcavam as trajetórias de brancos, filhos de europeus: basta destacar, por exemplo, como eles eram sedentos e ciosos de seus títulos nobiliárquicos inventados nos Trópicos. Isso leva a concluir que valores e significados daquela sociedade em transição permeavam a todos que dela faziam parte. O que havia de específico aos afrodescendentes naquela ocasião era algo muito mais complexo e profundo, algo que ainda urge na sociedade contemporânea: encarar o passado escravista, compreendê-lo, superá-lo e, a partir daí, construir as bases de uma sociedade verdadeiramente igualitária.
Luiz Geraldo Silva é professor titular da UFPR e bolsista do CNPQ. E-mail:
lgeraldo@ufpr.br
[https://orcid.org/0000-0002-8804-1063]
Saiba mais
BELTON, Lloyd. Emiliano F. B. Mundrucu: Inter-American revolutionary and abolitionist (1791-1863). Journal Atlantic Studies Global. London, v. 15, n. 1, p. 62-82, 2018. DOI: https://doi.org/10.1080/14788810.2017.1336609
SILVA, Luiz Geraldo. Afrodescendientes libres y libertos en Brasil y el mensaje revolucionario de Haiti (1779-1830). In: O’PHELAN, Scarlett. (org.). Una nueva mirada a las independencias. Lima: Fondo Editorial PUCP, 2021, p. 65-89.
SILVA, Luiz Geraldo; SOUZA, Fernando Prestes. Negros apoyos. Milicianos afrodescendientes, transición política y cambio de estatus en la era de las independencias (capitanías de São Paulo y Pernambuco, Brasil, 1790-1830). Nuevo Mundo-Mundos Nuevos, 2014, p. 1-25. DOI: https://doi.org/10.4000/nuevomundo.67529
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