Os escravizados, os forros e as “pessoas livres de cor” participaram ativamente das lutas da Independência, porém seu comportamento não foi uniforme
Petrônio Domingues
A população negra não apenas constituiu o principal agente produtor da riqueza na Terra Brasilis, povoou o tecido social e transmitiu sua cultura, mas também participou da vida política nacional. Em quase todos os movimentos sociopolíticos que marcaram a história do Brasil houve a presença de pessoas negras.
Para além da criação dos quilombos – ações coletivas autônomas dos escravizados, que acabaram por assumir um caráter político –, a população negra participou de todas ou quase todas as lutas sociais e políticas levadas a cabo no Brasil: quer na Colônia, quer no Império ou mesmo na República, até os dias atuais. Na medida em que tal segmento populacional participou dessas contendas, emprestou-lhes – ou tentou emprestar-lhes – novos sentidos e significados, de acordo com seus projetos emancipatórios.
A Conjuração Baiana (1798) – cuja liderança contava com pessoas das camadas populares, muitas delas negras e mestiças – já questionava o estatuto colonial e tinha em sua bandeira o combate aos preconceitos contra as “pessoas de cor”. A ideia da emancipação política, do ponto de vista das pessoas “pretas” e “pardas”, estava ligada às expectativas de mudanças que pudessem incluí-las socialmente no campo dos direitos e da cidadania.
O movimento pela Independência do Brasil, intensificado com a Revolta Liberal do Porto (1820), envolveu as diversas regiões da colônia portuguesa na América numa conjuntura em que a instituição escravista vicejava. Pode-se dizer que um projeto de Brasil como país independente de Portugal foi se impondo aos poucos. Depois de alguma hesitação, as elites políticas e econômicas passaram a defender a independência sob a direção de D. Pedro I. Avaliavam que este seria o caminho mais seguro para resguardar seus interesses voltados para a economia agroexportadora e a continuidade da escravidão e do lucrativo tráfico transatlântico que convertia africanos em escravos.
No entanto, as elites se defrontaram com um dilema: como incorporar amplos segmentos de uma sociedade escravista numa luta pela liberdade da dominação metropolitana sem colocar em questão a própria escravidão? Esse impasse fez-se presente e norteou as formas assumidas pela trajetória da colônia brasileira no que diz respeito à emancipação política.
Por outro lado, as camadas populares urbanas, os libertos e mesmo os escravizados tinham expectativas e interesses próprios com relação à independência. Para as populações cativas (africanos e crioulos), num momento em que tanto se falava em liberdade, a independência se apresentava como a oportunidade de verem abolida a escravidão e se inserirem como cidadãos livres no contexto de um país emancipado. Pode-se dizer que a luta de independência comportava projetos diversos de Brasil.
Às vésperas da Independência, havia 1.107.389 escravizados no Brasil, o que representava cerca de um quarto da população total, estimada em 4.396.132 indivíduos, sendo 2.488.743 os livres e 800 mil os “índios não domesticados”. Neste cenário, duas questões eram importantes: primeiro, boa parte da população negra era escravizada; segundo, mesmo os livres e libertos ocupavam a base da pirâmide dos que eram excluídos econômica e politicamente. Muitas pessoas “pretas” e “pardas” viam na independência uma oportunidade de superar a exclusão e abolir a escravidão. Daí sua intensa participação no processo de emancipação política.
No caso da Bahia, onde as batalhas contra os portugueses se estenderam até inícios de julho de 1823, a participação das populações negras e mestiças – com destaque para os escravizados, sobretudo os crioulos, mas também os africanos – foi saliente. Como exemplo, podemos citar Maria Felipa, uma mulher negra que trabalhava com pescado, na Ilha de Itaparica, e teria liderado ações coletivas do lado patriota. Surgiu até um tal de “partido negro”, uma referência a ação de escravizados, libertos e pessoas livres “de cor” defendendo seus próprios anseios, na medida em que tentavam negociar seu engajamento no movimento da Independência ou subverter a própria ordem escravocrata no calor do conflito luso-brasileiro. Por esse motivo, a classe senhorial baiana temia o alistamento de cativos nas tropas patriotas. Havia o receio de uma reedição no Brasil da Revolução do Haiti (1791-1804) ou mesmo de que os escravizados racializassem a pauta e atribuíssem centralidade à causa da liberdade. ¹
Envolver-se na luta da Independência não foi uma exclusividade dos escravizados da Bahia. No Rio de Janeiro, entre 1822 e 1824, foram construídos fortes para a defesa da cidade contra uma possível invasão portuguesa. Para os cativos, trabalhar nas obras dessas fortificações, situadas em regiões de fronteira, poderia significar a possibilidade de liberdade e de uma vida melhor: fugia-se na calada da noite para o serviço nos fortes, bem como das obras dos fortes e dos serviços públicos para se aquilombar. Essa esperança era alimentada pelo fato de alguns escravizados baianos terem conseguido a liberdade nos embates contra os portugueses. ²
No contexto da emancipação política, manifestaram-se lado a lado distintos interesses e projetos de nação soberana. Os escravizados e as pessoas negras em geral estiveram presentes nas lutas da Independência, de forma violenta ou pacífica, pouco ou muito significativa. Não obstante, o seu comportamento não foi uniforme: muitos aderiram ao movimento da Independência para, com isto, tentarem conseguir a alforria; alguns lutaram por simples obediência aos seus senhores; outros se aproveitaram da confusão e fugiram, aquilombando-se. Ainda tiveram aqueles que participaram ao lado dos portugueses.
Em face das características assumidas pelo processo da emancipação política, por mais relevantes que possam ter sido as transformações provenientes da ruptura do estatuto colonial, o Império do Brasil não acenou por justiça social, mantendo a estrutura central da organização produtiva da colônia, qual seja: a exploração do trabalho compulsório.
Isso frustrou muitos dos escravizados e pessoas “de cor” que cerraram fileiras contra os portugueses, sonhando com uma liberdade que só viria às vésperas da República – porém ainda sem inclusão social. É óbvio que grande parte das desigualdades raciais na sociedade brasileira do tempo presente foram construídas nestes 134 anos passados desde a Abolição, mas não é menos certo que essa construção tem entre seus alicerces as cicatrizes profundas que a escravidão, pujante à época da Independência, deixaria para nós no período republicano.
Os donos do poder evitaram as mudanças mais profundas que haviam norteado a emancipação política, tolhendo a população negra da participação cívica ou tentando impedi-la de ter voz na conformação dos desígnios da nação. Entretanto, esse grupo populacional teimou em resistir e, na medida do possível, também assumiu um papel ativo, fazendo uma leitura própria das ideias sobre a Independência e lutando – no passado e no presente – por um projeto de Brasil mais inclusivo do ponto de vista das liberdades, dos direitos e da cidadania.
¹REIS, João José. O jogo duro do dois de julho: o ‘Partido Negro’ na independência da Bahia. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 79-98
²RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo da liberdade e a participação de homens livres pobres e ‘de cor’ na Independência do Brasil. Cadernos Cedes, Campinas, v. 22, n. 58, p. 21-45, 2002.
Petrônio Domingues é Doutor em História Pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor Associado da Universidade Federal de Sergipe (UFS), além de Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: pjdomingues@yahoo.com.br
Saiba Mais
MOTTA, José Flávio. A escravidão brasileira à época da Independência. Revista USP, São Paulo, v. 1, n. 132, p. 37-58, 2022.
REIS, João José. O jogo duro do dois de julho: o ‘Partido Negro’ na independência da Bahia. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 79-98.
RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo da liberdade e a participação de homens livres pobres e ‘de cor’ na Independência do Brasil. Cadernos Cedes, Campinas, v. 22, n. 58, p. 21-45, 2002.
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