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  • Foto do escritorJanaína Martins Cordeiro

A INDEPENDÊNCIA EM TEMPOS DE MILAGRE

Em 1972, o Brasil celebrou os 150 anos da Independência, ocorrida em 1822. A ditadura militar, no auge do milagre brasileiro e dos anos de chumbo do regime, celebrou a data com pompa.


Arquivo Nacional. Foto da autora

Em 1972, o Brasil preparava-se para comemorar os 150 anos de sua independência política de Portugal, ocorrida em 1822. Então, a ditadura preparou uma grande festa cívica, que deveria ocorrer ao longo de quase cinco meses, entre abril e setembro, mobilizando o país de Norte a Sul. Para o regime, já no poder há oito anos, era importante contar, naquele momento, a sua própria história da Independência. Tratava-se, portanto, de inserir o golpe de 1964 – chamado por seus adeptos, de ontem e de hoje, de “revolução” – e a ditadura como desdobramento natural da história do Brasil. Para tanto, a ditadura soube mobilizar personagens e eventos, construindo uma narrativa específica dos acontecimentos, celebrando, assim, o passado, mas também o presente.


Àquela altura, quando a festa aconteceu, o regime se tornava cada vez mais violento e eficiente na caça aos seus inimigos. Desde a edição do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, o general presidente da vez tinha plenos poderes para dissolver o Congresso Nacional, decretar intervenção nos estados e municípios, suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos por até dez anos, bem como o direito ao habeas corpus, dentre outros. Além disso, com o passar dos anos, os órgãos de informação e repressão do regime foram aperfeiçoados e, na primeira metade da década de 1970, funcionavam à pleno vapor. A tortura tornou-se política de Estado. Prisões arbitrárias, desaparecimentos de opositores, censura à imprensa. Tudo isso estava na ordem do dia. Eram os anos de chumbo da ditadura.


Ao mesmo tempo, em um aparente paradoxo, o Brasil vivia também verdadeiros anos de ouro. Uma espécie de euforia nacionalista e desenvolvimentista generalizou-se, impulsionada pelos efeitos de determinada política que levou o país a ingressar em um período de recuperação e crescimento econômico. Vitórias esportivas – dentre as quais, a conquista do tricampeonato mundial de futebol, em 1970 – somavam-se às inúmeras, incontáveis obras estruturais que rasgavam o país de Norte a Sul. As facilidades de crédito viabilizaram o acesso à casa própria e ao carro zero, sobretudo para as classes médias. O controle da inflação permitiu também a muitas famílias adquirirem bens, como geladeira e televisão – em cores em alguns casos –, símbolos do Brasil moderno.


Foi nesse contexto que o regime se empenhou, ao longo de todo o ano de 1972, em celebrar o Sesquicentenário da Independência do Brasil. Sob esse aspecto, as comemorações deveriam retratar o país do milagre: a grandeza cívica e o crescimento econômico, mas também a força e o pulso firme do Brasil e da ditadura.


Em janeiro de 1972, foi criada a Comissão Executiva Central (CEC) para dirigir e coordenar as comemorações. A CEC definiu a narrativa e o calendário das comemorações, ou seja, que datas, acontecimentos e personagens deveriam ser celebrados e como suas histórias deveriam ser contadas, o que deveria ser lembrado, o que precisava ser esquecido. Tais escolhas deveriam expressar não apenas o desejo e a importância de voltar-se para o passado nacional, mas também deveriam ser pródigas na celebração do momento de grandeza, de acelerado crescimento econômico e otimismo crescente que envolvia segmentos significativos da sociedade brasileira naqueles primeiros anos da década de 1970.


Foi nesse sentido que o mote das comemorações se centrou na ideia de que se o 7 de setembro de 1822 representava a conquista da independência política pelo Brasil, 150 anos depois, a ditadura promovia uma outra e fundamental conquista: a independência econômica. Assim, o país livre, politicamente independente desde 1822, alcançava, então, com os militares, a maturidade e, enfim, a autonomia econômica que faria do Brasil uma potência mundial.


Na grande celebração proposta pelo regime, a festa concentrou-se efetivamente em duas personagens que ganharam, ao longo dos séculos XIX e XX, auras de heróis nacionais. Foram eles, Tiradentes e D. Pedro I. Assim, a abertura oficial dos festejos ocorreu em 21 de abril, dia de Tiradentes, e somente terminaram no dia 7 de setembro, tendo como ponto alto a repatriação dos restos mortais de D. Pedro I, de Portugal para o Brasil. Entre uma data e outra, cinco meses inteiros de festas nos quais a ditadura se expôs solene aos brasileiros, festejando a História-Pátria, mas também, e principalmente, o presente e as perspectivas de futuro.


As comemorações do Sesquicentenário devem ser compreendidas como um momento no qual a ditadura, ao se apropriar da História Nacional e imprimir a ela suas próprias cores e referências, buscou estabelecer diálogo com importantes tradições cívico-patrióticas, incorporando-se a elas. Ao mesmo tempo, não é possível compreender o tom das comemorações sem considerar o contexto do regime e do milagre brasileiro, em suas complexidades e contradições.


Portanto, a celebração do Sesquicentenário foi um momento em que a ditadura se voltou para o passado com os pés profundamente fincados no presente, exaltando, antes de mais nada, a noção de “construção do novo”. Sem perder de vista que, pela lógica do regime, construir esteve sempre associado à ideia de vigilância, porque os inimigos do povo conspiram. Assim, a celebração do Sesquicentenário, conforme realizada pela ditadura, sintetizou bem as expectativas em torno da construção do Brasil potência. Tais expectativas, no entanto, somente puderam se realizar em função de um duplo que a ditadura conseguiu articular bem e colocar em prática: a coerção e o consentimento.


Janaína Martins Cordeiro é professora da Universidade Federal Fluminense e autora do
livro A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento (FGV,
2015). E-mail: janainamcordeiro@gmail.com [https://orcid.org/0000-0002-0594-5113]

Saiba mais

CORDEIRO, Janaina Martins. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: FGV, 2015.

FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997.

REI, Bruno Duarte. Celebrando a pátria amada: esporte, propaganda e consenso nos festejos do Sesquicentenário da Independência do Brasil (1972). 1. ed. Rio de Janeiro: 7Letras, 2020.




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